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A mostrar mensagens de julho, 2015

Memórias de Feirão: os dias tristes

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Dias tristes em Feirão, antes de eu nascer, eram os da partida para longe (sair da terra já era ir para longe), para a tropa ou a morte de alguém. Feirão, entre os anos 50 e 70, teve um grande fluxo migratório. Para o estrangeiro: Brasil, França e Alemanha, e cá em Portugal, o Porto, a Marinha Grande (“descoberta” por uma minha tia-avó) e para Lisboa. À noite, ao toque do sino, quem tivesse os seus longe da casa, marido, filhos, sobrinhos, rezava à Senhora da Guia “Que os alumiasse e guiasse nos seus caminhos”. Eram nomeados, um a um, e cada um tinha o seu pai-nosso e a sua ave-maria. Só depois se jantava o caldo triste e amargo, porque triste e amarga era também a vida. Não adiantava escrever cartas porque poucos as saberiam ler. A minha mãe, por exemplo, lia as cartas à minha tia-avó, e estamos nos anos 60. Quem ia para a tropa ficava entregue à Senhora dos Milagres, que sempre teve uma grande devoção aqui em Feirão. Se não acontecesse nada ao filho, ou se ela o livrasse da trop

João de Deus

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Naquele longínquo outono de 1894, uma jovem rapariga, antes do sol desaparecer, uma rapariga, que tinha dado à luz durante a noite anterior, pegou no seu crio, entre lágrimas e dor, e saiu de casa. Não podia criá-lo. A pobreza em casa era mais que muita, mais uma boca para alimentar era mais fome, o rapaz que lho fez não quis saber nem dela nem dele… O engodo foi grande: que gostava muito dela, que a amava e até que queria casar com ela… mas precisava de uma prova da parte dela. Ela, coitada, a pensar que entregando-se seria a melhor prova de amor, deu-lhe o que ele quis. O problema foi que ele fartou-se dela ao cabo de um mês, que afinal era novo para se casar e ela que pensasse noutro porque ele não ia casar e o amor tinha arrefecido. Ela, coitada, decidiu esconder a barriga o mais que pôde, o que não foi difícil porque entre as roupas e as vagueações pelos povos a mendigar pouco se via por casa. Saia manhã cedo e chegava já à hora da ceia. Não se escondia nem mentia, ia mesmo men

São Cristóvão

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No dia 25 fez-se aqui, no monte de Felgueiras a Feira anual de São Cristóvão. Não tenho ideia da última vez que lá fui, há mais de 11, certamente. A feira não é muito grande mas é a única aqui do concelho de Resende: vendas de gado, de alfaias agrícolas, roupas e “da ameixa e da nabinha”. Ameixas já não vi mas a nabinha, sim, ainda se vendia. A feira começa cedo, aliás, de véspera, coisa que antigamente não era. Antigamente, depois da lua de bois é que se fazia o baile com umas concertinas, violinos e realejos. Mas agora é diferente. E lá fui na véspera à noite, nevoeiro cerrado a uma altitude de 1145 metros, para ver o que se passava. O baile era fraco mas, ao lado, numa das tabernas típicas das feiras, cantava-se à desgarrada: uma concertina e dois cantadores. Estava com uns amigos e com a minha mãe e lá assentámos arraiais a ouvi-los cantar. No dia lá nos pusemos a caminho, a pé, que é perto e bom caminho, para dar a volta à feira. É costume, a meia manhã tomar um pequeno-a

Liber Generationis

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Comecei em 2007 a tentar construir as minhas ascendências. Sempre mais inclinado para os lados de Feirão, por ter gente mais à mão e os livros paroquiais, que são preciosidades históricas, de registos dos baptismos, casamentos e óbitos. Por uns chegamos aos outros e assim fui eu subindo até à quinta geração. Quase todos os anos vou buscar os livros antigos, folheio-os e descubro sempre algum pormenor. Este ano copiei e fotografei os registos que me eram mais queridos: casamento dos meus avós e baptizado da minha mãe, registando os nomes dos padrinhos, horas de nascimento e idades das mortes. Sim, há muitas mortes, por exemplo, entre 1943-1946. Aqui diz-se que foi a malina, uma peste que matou quase tudo o que era crianças, não escapando também alguns adultos. Da minha família, por exemplo, morreram três crianças (irmãs da minha avó) entre os dois e os quatro anos, duas delas com 15 dias de diferença e a outra uns meses depois. Ontem, em Cotelo, ao comentar com uma senhora esta m

Os braços da minha mãe

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Estar de férias com a minha mãe e, pela primeira vez, só os dois, é o melhor presente que se pode ter. Há onze anos, neste dia, morria o meu pai, aqui em Feirão, o último dia em que estivemos os três. De lá para cá as férias foram sempre com tios, irmão, sobrinhas... Com a minha mãe falo do passado e do presente, contam-se as histórias dos lugares e dela nos lugares. Passeia-se e descansa-se na varanda da casa: eu leio ela faz croché. Sem ela dar conta, olho muitas vezes para ela, calado, como quem contempla a natureza, ou a mais bela estátua esculpida na pedra. Como estas pedras ou casas ou árvores antigas de Feirão, a minha mãe também faz parte do seu património: é de Feirão. Hoje fomos fazer uma caminhada a pé até ao monte de São Cristóvão onde, sábado, se fará uma grande feira. Subimos a um monte e ela sentou-se no cimo de um penedo. Calada, a ver. Depois de um tempo de silêncio, quase religioso, disse: sempre gostei de subir aos penedos. No regresso, passámos no cemité

Quem o meu coração ama

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Celebra hoje a Igreja, e a Ordem Dominicana com mais alegria, a memória de Santa Maria Madalena. Celebra-a a Igreja pela sua proximidade a Cristo; celebram-na os dominicanos por ser a primeira pregadora da Ressurreição de Jesus. Mulher a quem o Senhor chamou, e a quem ela seguiu e serviu com a imensidade do amor do seu coração. Uma proximidade que não sufoca nem prende. As leituras da Missa tão bem nos demonstram este amor livre e libertador. Por três vezes, na primeira leitura, do cântico dos cânticos, a esposa pergunta por aquele por quem o seu coração ama. Foi a preocupação da Madalena na manhã de Páscoa: “Senhor, se foste tu que o tiraste, diz-me onde o puseste, que eu irei buscá-lo. No Evangelho, Jesus responde à ânsia de ela se querer agarrar a Jesus dizendo-lhe: Não me detenhas”. Encontrar aquele que o coração ama. Esta busca, sempre insaciante e cada vez mais profunda é, como dizia São João da Cruz, beber na “fonte que mana e corre, mesmo se é noite”. Só o Amor livre

Uma nuvem

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Ontem à noite, vinda do Douro, apareceu esta nuvem, lentamente, que se colocou em cima do Penedo Gordo, passou e desfez-se. Passava pouco das nove da noite. Aqui fica o registo.

Memórias de Feirão: As viagens

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Regressar aos anos oitenta para falar de viagens, as exteriores, e em especial das viagens de Lisboa a Feirão e de Feirão para os arredores (Cotelo, Castro Daire, Resende e Lamego) é, praticamente falar em boleias ou muito palmilhar. Os meus avós saíram de Feirão nos meados dos anos 60. Diz a minha mãe que só voltou cá, e ela foi a primeira a vir depois da migração, 10 anos depois. Já trabalhava, veio pelo Natal, ficou a dormir em casa de uma tia. Diz ela que, ao contrário do que se fez quando foram para Lisboa, que tiveram de ir a pé para Bigorne com as coisas às costas, quando veio dez anos depois já veio de camioneta até Feirão: o tio Alberto, da Talhada, alugava um autocarro com motorista, organizava a viagem, as pessoas pagavam um tanto mas acabava por ser serviço porta-a-porta. E foi assim que vim várias vezes sem me lembrar e foi assim que vim a primeira vez que me lembro vagamente: saíamos de Lisboa ao princípio da noite de sexta-feira e chegávamos a Feirão no dia segui

Memórias de Feirão: O Domingo

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Um pouco por todo o norte o domingo é o grande dia. Longe de ser o dia em que não se faz nada, acaba por ser o dia em que se pode fazer menos. É verdadeiramente o dia do descanso, que é merecido e deve ser santificado. Lembro-me de, em pequeno, a minha mãe apontar para a lua explicar-me aquela mancha que aparecia algumas vezes, sobretudo quando estava cheia: foi uma senhora que, num domingo, se pôs a apanhar lenha. Apareceu-lhe Deus e perguntou-lhe o que estava a fazer. Ela respondeu que estava a apanhar lenha mas, que estava tão escondida que ninguém via. Então Deus disse-lhe: pois vou pôr-te num lugar onde todos te vejam. E lá está, para que as pessoas se lembrem que ao domingo não se trabalha . A semana acabava no sábado à noite. Para não deixar trabalho para o domingo, o dia acabava mesmo tarde: muitas vezes, já nós em casa tínhamos jantado e ainda se ouviam carros de vacas a trazer lenha, feno, os molhos de centeio ou as batatas. E, se chegavam a essa hora, ainda tinham que

Resquícios

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Em Feirão celebro Missa todos os dias às 8h da manhã. Depois venho tomar o pequeno almoço. E depois, preparo-me para trabalhar: ligo o computador, vou à fonte buscar água fresca e ligo a rádio, sempre na Antena 2 que, como dizia um professor meu, é um oásis no meio dos desertos da comunicação social. Ao ir à fonte, encontrei estas vacas jungidas (aqui diz-se junguidas), carregando fardos de feno. Este ano, por causa do calor, tudo é mais cedo, até o feno. Carregam para elas, não se tenha pena; este feno vai ser guardado no palheiro, ainda verde, para que no rigor do inverno, possam ter com que se alimentar. O que, antigamente, era tão normal ver aqui em Feirão, hoje só duas ou três famílias ainda seguem este meio de transporte do que trazem das terras e lameiras.

Recuperar a identidade

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Semana calma, de trabalho, descanso, leitura e oração. Sozinho consegue-se, com mais gente, muitas vezes tem que se deixar aconselhar pelo Senhor, que nos diz para entrarmos no nosso quarto ou, então, imitá-lo, indo para um lugar ermo. Hoje, mesmo sozinho, fui rezar vésperas e o terço ao Fojo, capela que tanto me diz. Mas, esta semana, graças a Deus, tem sido de descanso, apesar do trabalho. Acabei hoje de traduzir o Ritual das Profissões, agora é fazer a revisão e, depois, pedir a correcção. Trouxe, para leitura, dois livros que marcam a actualidade da Igreja: a encíclica do Papa sobre o cuidado da casa comum e o livro do Cardeal Kasper sobre a misericórdia. O primeiro está perto da varanda, o outro na mesa-de-cabeceira. Já tinha começado a ler encíclica nos dias em que estive de “retiro”. Agora peguei nela, no número que tinha deixado. E, na varanda, diante do Penedo Gordo, sentindo a brisa da tarde, o cantar dos pássaros e as campainhas das vacas, leio o número 84, que diz

Frutos da terra

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Esta manhã vieram trazer-me estes frutos da terra. Mais biológicos e frescos não podem ser. E mais que os frutos, conta a generosidade de quem é pobre partilha o que tem.

Memórias de Feirão: a casa

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Vou dedicar alguns textos das férias às memórias que guardo de Feirão e Cotelo. Certamente serão coisas muito dispersas e vistas a partir de alguém que é residente só três semanas ou um mês nas férias. Hoje começo pela casa de Feirão. A casa da minha família aqui em Feirão é uma casa grande. Aliás, grande parte delas são grandes porque grande era a família. Esta, tem praticamente a mesma idade que eu, construída com o suor do meu avô e do seu genro, o meu pai. Gente pobre, que trabalhava em Lisboa mas que juntava uns dinheiros para construir uma casa na terra. Quando nos anos sessenta foram para Lisboa, não tinham nenhum terreno nem casa. A casa onde vivia o meu avô, com a minha avô e, à data da saída de Feirão, cinco raparigas e um rapaz recém-nascido, não era deles. Era da minha bisavó, mãe da minha avó, que lha emprestou enquanto não arranjasse casa própria. Uma cozinha e um quarto e assim era lar, doce lar daquela pobre família. A minha avó vendia sardinhas, como outras mulh

Feirão 2015

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Este ano calhou assim. E há 11 anos que assim não era. Contingências da vida e do trabalho. Estou em Feirão, aquela que considero a minha terra. Diz-se por aqui que os Lisboa são os mais tristes porque não têm terra. Eu nasci em Lisboa mas o meu coração nasceu em Feirão. Aqui cresci, aqui tenho uma história de vida, aqui estou na minha terra que me dá paz. Vir a Feirão, é fazer a experiência do regressar às origens. Como um filho que foi adoptado, que ama muito a mãe que o adoptou mas que sente o coração a bater mais forte quando está perto da mãe biológica. O meu coração bate mais forte quando saio da auto-estrada e entro na serra onde construíram Feirão. Abrir janelas e deixar entrar o ar. Aqui ainda é puro. Puro e fresco. Primeiro o cheio a giestas, que já deixaram cair a flor e começa a secar a semente. Depois, chegar ao Alto de Gosende, ver se tudo está no sítio. Sim, tudo está no sítio. Cotelo à esquerda e Feirão á direita. Abrir bem os pulmões, sentir o cheiro do feno, aind

Onde estou

Não estou em Portugal. Sendo assim, só há duas possibilidades de saída: terra ou mar. No sítio onde estou tudo é calmo: olho para a frente e vejo a imensidade do mar, azul esverdeado, calmo e limpo; olho para trás e vejo o campo, também ele imenso, cheio de girassóis e gado a pastar. Para o meu lado esquerdo um rio que desagua no mar e, no lado direito, um farol no cimo de uma montanha, eu indica o fim da terra e o princípio do mar. No sítio onde estou a vida é calma. As casas, todas caiadas de branco, com alguma excepção, também dão calma e luz. E com calma vou passando os dias, num ritmo adequado ao sítio onde estou? Mas, afinal, onde estou? Ainda neste mundo.