Aristides Sousa Mendes e a consciência

No ano passado, na véspera da Eucaristia que celebrámos, o Papa Francisco na sua habitual audiência das quartas-feiras, lembrou o dia e a pessoa que nós hoje também lembramos: o dia da consciência e a figura a ele ligada, Aristides Sousa Mendes (ASM). Também por esses dias, o nosso país aprovava que Aristides Sousa Mendes tivesse um lugar no Panteão Nacional, o lugar onde ficam perpetuados os nossos ilustres. Como capelão do Externato Marista de Lisboa fiquei também bastante agradado ao ver nas salas das turmas do secundário, uma cronologia do século XX. E em todas elas constava a fotografia deste nosso grande herói. Comprovei que não só sabiam quem era, mas o porquê de fazer parte da história do século passado. Aos poucos vai-se redescobrindo esta figura de excelência nossa conterrânea, e quem dera que ficasse lembrado não tanto pela memória de um passado, mas pela urgência em dar continuidade às suas intuições e acções, tão importantes e actuais na construção de um mundo com mais respeito e liberdade, com mais tolerância e mais igualdade.
Para a nossa celebração, apoiados na Palavra de Deus que é inspiradora para cada um de nós, como foi para Aristides Sousa Mendes (a sua expressão: “se há que desobedecer, prefiro que seja a uma ordem dos homens do que a uma ordem de Deus” é praticamente uma citação do livro dos Actos dos Apóstolos em que, tendo sido formalmente proibidos de falar no nome de Jesus disseram aos governadores: “Importa mais obedecer a Deus do que aos homens”), gostava de reflectir sobre três aspectos que nos ligam à vida de Aristides Sousa Mendes e ao dia que hoje celebramos.
E o primeiro é mesmo este da consciência. Tomás de Aquino, por várias vezes nos seus escritos falou da consciência. E várias vezes define-a como a aplicação da ciência a um acto. Mas na Suma de Teologia dedica mesmo um artigo à consciência e diz que ela umas vezes atesta (confirma), outras obriga ou incita, e outras ainda acusa ou reprova. E exemplifica: quando reconhecemos que fizemos ou não uma determinada acção, aí a consciência atesta. Quando a nossa consciência nos leva a fazer ou não determinada acção, ela incita, obriga. E quando julgamos uma acção de bem feita ou não, aí a consciência acusa ou reprova. Fui buscar São Tomás de Aquino porque ASM tinha consciência e tinha-a bem formada. A consciência obrigou-o a contrariar leis e a enfrentar consequências nefastas para si e para os seus, mas seguiu sempre a lei mais forte, que é a da consciência. Este é o grande dilema do agir humano: que fazer em situações-limite? Muitas vezes optamos pelo mais fácil, pela não implicação, por encolher os ombros e, apesar de nos emocionarmos com as desgraças do mundo, depressa as esquecemos. Anos mais tarde, a própria Igreja vai consagrar num dos documentos do Concílio Vaticano II, um número à dignidade da consciência moral do qual passo a citar uma parte: “No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faz isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser”. Linhas extraordinárias, mas mais extraordinário é perceber que ASM e muitos outros não se deixam levar pelo facilitismo, pela indiferença ou pela omissão. 
E omissão é o segundo aspecto que gostava de relembrar aqui. Quando na confissão batemos com a mão no peito, reconhecemos por pensamentos, palavras, actos e omissões. E não poucos crentes acham que a omissão um não-dizer, um ocultar. Mas não. A omissão não se prende com o dizer mas com o fazer, ou melhor, com o não fazer. Padre António Vieira, no seu sermão do primeiro domingo do Advento, pregado em Lisboa, na Capela Real em 1650, fala da omissão. Segundo ele, são os pecados que nos hão-de meter no inferno. Para além da retórica, reparemos no conteúdo: “Por uma omissão perde-se uma inspiração, por uma inspiração perde-se um auxílio, por um auxílio perde-se uma contrição, por uma contrição perde-se uma alma; dai conta a Deus de uma alma, por uma omissão. Desçamos a exemplos mais públicos. Por uma omissão perde-se uma maré, por uma maré perde-se urna viagem, por uma viagem perde-se uma armada, por uma armada perde-se um estado. Dai conta a Deus de uma Índia, dai conta a Deus de um Brasil, por uma omissão. Por uma omissão perde-se um aviso, por um aviso perde-se uma ocasião, por uma ocasião perde-se um negócio, por um negócio perde-se um reino. Dai conta a Deus de tantas casas, dai conta a Deus de tantas vidas, o dai conta a Deus de tantas fazendas, dai conta a Deus de tantas honras, por uma omissão. Oh que arriscada salvação! Oh que arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros. Está o príncipe, está o ministro divertido, sem fazer má obra, sem dizer má palavra, sem ter mau nem bom pensamento; e talvez naquela mesma hora, por culpa de uma omissão, está cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do Mundo em muitos anos. A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete e com mais dificuldade se conhece; e o que facilmente se comete e dificultosamente se conhece, raramente se emenda. A omissão é um pecado que se faz não fazendo; e pecado que nunca é má obra, e algumas vezes pode ser obra boa, ainda os muito escrupulosos vivem muito arriscados neste pecado”. Tivesse ASM ficado insensível ao clamor dos milhares de judeus que lhe pediram ajuda e não seriam só as vidas deles que se tinham perdido, mas também a sua. Mas não temeu perder a sua vida para poder salvar a de muitos. Acto heróico, muito humano e muito cristão, tão tardiamente reconhecido, humanamente falando, mas sempre reconhecido, como se de reconhecimento precisasse, pela linha evangélica que traçou para a sua vida e para a sua missão.
E o terceiro aspecto que queria salientar hoje é este mesmo: como os evangelhos foram, de certa maneira, a sua regra de vida e, muito em especial, nesta tragédia humanitária que vivemos e com a qual ASM se debateu no seu tempo, que é a dos refugiados. Esta é uma questão sensível para o mundo e também para a Igreja. O Papa Francisco tem feito um trabalho de sensibilização e proximidade com esta realidade que não nos pode deixar indiferentes. Como ele diz: não são os outros, somos nós, e o desafio é passar do eu ao nós. Recentemente o Papa escreveu uma encíclica, inspirado em Francisco de Assis e outros, que nos convoca para um movimento de fraternidade universal e de amizade social. Em relação aos migrantes o Papa pede constantemente a prática de quatro verbos que são atitudes concretas: acolher, proteger, promover e integrar. Verbos que estiveram também presentes na vida e actuação de ASM, mesmo depois de deixar de ser Cônsul. Já em Portugal, por exemplo, vivendo em dificuldades, nunca deixaram (ele e a mulher) de apoiar os refugiados, dizendo várias vezes que “ao acolher e ajudar os refugiados era a Jesus que o estavam a fazer”.
Meus queridos amigos, há muito trabalho a fazer. Manter viva a memória de ASM não pode ficar só no ler e no falar. Passa muito pelo fazer. Fazer e ensinar a fazer. Estas gerações mais novas, que vivem numa verdadeira bolha ideológica que as torna mais intolerantes, em que o egoísmo não quer saber do outro, que insiste em construir muros em vez de construir pontes, estas gerações precisam de se deixar contagiar por este exemplo luminoso, que seguiu sempre a voz da sua consciência, que preferiu a acção em vez da omissão, que nunca perdeu a esperança nos momentos mais dramáticos da sua vida e que sempre teve fome e sede de justiça e, por isso, é chamado e contado entre os “Justos entre as nações”.
No Evangelho escutámos Jesus a ensinar como nos devemos dirigir a Deus e daqui a pouco iremos nós rezar esta oração dos filhos de Deus. Que o Pai nosso nos ajude a pôr em prática o ideal da existência humana: Deus, como princípio e fim da nossa vida e o próximo a quem devemos servir e amar.

 

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