A graça do recomeço - homilia

Começamos hoje, de uma forma muito diferente e se calhar nunca imaginável, o tempo da Quaresma. A Quaresma é um tempo e um rito. Um rito que tem muitos ritos dentro dela. Por exemplo, o rito da imposição das cinzas, que para muitos cristãos será hoje espiritual. 
E podemos ver o rito de duas perspectivas: ou como rotina (mais uma quaresma) ou como um mecanismo que nos ordena (uma quaresma que traga novidade às nossas vidas). Antoine de Saint-Exupery, no Principezinho, define o ritual nesta segunda dimensão, que é a verdadeira. O principezinho pergunta à raposa o que é um ritual e a raposa responde-lhe: “É uma coisa de que toda a gente se esqueceu: é o que torna um dia diferente dos outros dias e uma hora diferente das outras horas”. 
Todos os anos, quarenta dias antes da Páscoa, a Igreja reúne-se para dar início ao tempo de conversão (de regresso a Deus, como iremos cantar daqui a pouco) numa atitude de verdade e humildade. Aliás, atitudes indispensáveis que estão por detrás destas três práticas que Jesus nos indica no Evangelho: façamos jejum com verdade e humildade; rezemos, com verdade e humildade, pratiquemos a caridade, com verdade e humildade. 
Hoje somos convidados a acolher o apelo de Deus, de cuidarmos do nosso interior, de nos preocuparmos mais em rasgar o coração so que com as aparências. Só quando abrirmos o coração a Deus é que poderemos entender que ele é clemente e compassivo, paciente e misericordioso. 
Hoje somos convidados a entrar em nós, a ficar em casa, como tanto se ouve nestes últimos tempos, para que Deus possa criar em nós um coração puro e fazer nascer dentro de mim um espírito firme.
Hoje começa um tempo favorável, como nos dizia São Paulo. Tempo favorável para nos reconciliarmos com Deus. Sim, precisamos de nos reconciliar com Deus. Quando ofendemos a criação ofendemos a Deus, que tudo criou com bondade e beleza. Quando desprezamos o próximo desprezamos a Deus, que está no pobre, no marginal. Quando não damos o nosso máximo, preferindo entrar nos nossos esquemas, no nosso lucro, nas nossas vantagens, no nosso comodismo e egoísmo, afastamo-nos de Deus, que nos criou para a relação e para a fraternidade. 
O essencial é invisível aos olhos, ensina-nos o Principezinho e ensina-nos a vida. O não podermos hoje receber as cinzas não significa que perdemos tudo, que começa mal a Quaresma. Não precisamos das cinzas para nos lembrarmos que somos pó, barro, frágeis, humanos… e que em pó nos havemos de tornar. Basta abrir as janelas das nossas casas, ouvir as sirenes das ambulâncias, ler os números arrepiantes de mortos de covid, doentes nos cuidados intensivos e outros com outras dores e doenças para percebermos que é aqui que construímos a nossa eternidade com Deus. As cinzas são um sinal externo de uma atitude interna de querer mudar. 
Para isso, basta aceitar Jesus, que passa pelas nossas vidas e diz a cada um de nós: arrepende-te e acredita na Boa-nova de Deus, que é misericórdia, justiça, amor e paz. Que Deus, Pai de misericórdia, nos dê a graça do retorno, de regressarmos a Ele, que é um Deus de ternura.

 

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