A moral ou a falta dela

De há uns anos para cá venho defendendo que um dos motivos que leva à degradação da moral e dos bons costumes da sociedade foi o deixar de se ensinar filosofia. Aliás, devia ser obrigatório que nas universidades e empresas se fizessem formações sobre valores fundantes da nossa sociedade, a começar por aprender o que significa viver em comum, com as suas implicações e a importância dos actos virtuosos, da formação da consciência, da política, da democracia... 
Vivemos como no tempo da predação. Senão vejamos: o que estamos a viver há quase um ano é catastrófico, mesmo se os estados sejam só de emergência. Esta pandemia, com tudo o que de negativo nos tem causado, devia fazer-nos reflectir sobre a importância da vida, a aceitação da nossa fragilidade, o respeito pelo outro, a prioridade aos mais débeis... mas não. Festas ilegais, um estado que não soube (sabe) gerir toda esta situação, tendo tido desculpa na primeira fase por ser novidade, não a tem agora por não ter preparado o país para esta segunda vaga…, a corrida às vacinas não segundo a ordem, mas a dos “salve-se quem puder” … Tudo se resolve com uma demissão ou com uma multa… é pouco para tão grande mal. Legislamos de acordo com o nosso baixo nível em vez de sermos exigentes e quase intransigentes com os perversos que têm a coragem de criar leis para protegerem o seu mau carácter. E o problema está – deixem-se agora ser velho e pessimista – na falta de formação da consciência de quem governa e de quem é governado. E o que acontece? O que tão alto proclamou o nosso Imperador da Língua Portuguesa no famoso (não sei se lido e reflectido) Sermão de Santo António aos peixes: devoramo-nos uns aos outros: “A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande”. Alegoria? Sim, nos animais, mas realidade nas pessoas. 
A filosofia teria, na formação da sociedade, um princípio de elevação. Lemos a Antígona de Sófocles, e vemos que a consciência é muito mais forte que uma má lei; aprendemos, como diz Antígona, que não nascemos para odiar, mas sim para amar; Ouvimos Pitágoras que nos diz que se educarmos as crianças não será necessário no futuro castigar os adultos; Aristóteles, então, dá-nos um curso fundamental de Ética (ou de felicidade), chegando nós à conclusão de que o homem feliz vive bem e age bem e ainda que pela prática de actos justos gera-se o homem justo e pela prática de actos temperantes, o homem temperado; sem essa pratica, ninguém teria sequer a possibilidade de se tornar bom. 
Fui aos clássicos e estrangeiros, mas poderia ficar por casa. Leia-se Agostinho da Silva, quase esquecido, excepto nas pequenas citações que buscamos para embelezar um texto; visitemos José Mattoso que, com lucidez nos diz que os seres humanos continuam a preferir a violência para resolverem os seus problemas, que tendem irremediavelmente para a apropriação e a acumulação, o que, num mundo com recursos limitados, equivale à violência; ouçamos Agustina Bessa-Luís, que foi mais que uma escritora de interpretação difícil; sim ela contribuiu para a formação das consciências dos seus leitores quando nos lembra que as elites deveriam demonstrar a realidade dos homens morais dentro duma sociedade imoral. 
E poderíamos ir ainda aos que não desistem de pedir uma sociedade mais humana e fraterna: olhemos o Papa Francisco, o nosso António Guterres, José Tolentino Mendonça que ainda no passado dia 10 de Junho nos alertava que o importante a salvaguardar é que, como comunidade, nos encontremos unidos em torno à actualização dos valores humanos essenciais e capazes de lutar por eles; e tantos outros que querem levantar o mundo a uma dignidade sempre possível. Todos queremos um mundo melhor, mas achamos que têm de ser os outros a construí-lo. Unimo-nos nas aflições, mas por pouco tempo. Acabamos por viver uma tragédia em acto. Se nos queixamos dos políticos, eles são fruto do nosso pouco interesse e projecção do nosso pensamento e do nosso querer. Se, como sociedade, tivéssemos sido educados no bom que a democracia tem, que não é só liberdade para falar e votar nem tão pouco ganhar uma maioria, como sociedade teríamos imediatamente repugnado os actos dos que, à socapa, conseguiram ser vacinados, conseguiram roubar, conseguiram fugir. Mas não, chamamo-los de "chicos-espertos" e pouco ou nada lhes acontece.
O país não precisa de um governo de salvação nacional nem de um governo de iniciativa presidencial; o país precisa de ser educado para que baixe o número dos perversos, dos corruptos, dos que se governam em vez de governar os outros, dos que se acham mais humanos que os outros humanos. 
Elevar a consciência dos cidadãos, formá-los para os valores humanos irrenunciáveis dá trabalho, cansa, mas, à frente, colher-se-ão os frutos. Não precisamos de ideias nem de revoluções. Precisamos de filosofia para que ela nos eduque e, educados, converta as nossas más acções em actos morais e vituosos.


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