Do estado de emergência ao estado de calamidade... sempre em estado de graça

“Deus perdoa sempre, os humanos às vezes, mas a Natureza nunca perdoa”
Várias pessoas reivindicam a autoria desta frase muito conhecida e, nos últimos dias, muito citada. O Papa Francisco citou-a há pouco tempo, ao falar desta pandemia que estamos a atravessar e, queira Deus, a ultrapassar.
Todo o mundo está a ser penalizado por este desastre da natureza. Também aqui a natureza não perdoou nem escolheu quem atacar (enquanto não se provar o contrário). Algumas pessoas disseram que parecia um filme de ficção científica, outras que era uma guerra biológica, outras ainda um tsunami. Ouvi um pregador dizer que Deus era nosso aliado e não aliado do vírus, o que me agradou, vi um cartoon com um diálogo entre Deus e o diabo em que este dizia para Deus: estás a ver? Com o covid19 acabei por fechar as tuas igrejas. Ao que Deus respondeu: enganas-te, abriste uma em cada casa. Não quis ler nem ouvir pessoas a querer insinuar que seria um “castigo de Deus” ou que “Deus não mandou o vírus, mas permitiu-o” e no meu WattsApp escrevi: “Por favor não me enviem notícias sobre o corona. Já basta o que basta. Obrigado”. Desliguei-me de desconversas de gente que não conhece o Deus que Jesus Cristo veio anunciar. Livre-nos Deus destes terroristas.
Os que ficámos confinados fomos os que mais colaborámos na não propagação do vírus: limitámos a nossa actividade (com graves consequências), deixámos de nos relacionar com pessoas com quem queríamos ou deveríamos estar, não pudemos continuar os tratamentos de saúde que precisávamos, não pudemos reunir-nos fisicamente nas nossas comunidades cristãs… Ao mesmo tempo que tentámos travar o vírus acabámos também por travar a economia (e sublinho, com graves consequências). Mas, em tudo e sempre, a saúde está primeiro, as vidas humanas também, e é bom que assim seja: perdemos muito dinheiro a nível pessoal, social e mundial, mas, digo no caso português, conseguimos limitar a tragédia dentro das nossas possibilidades. No nosso caso não foi necessário tomar a terrível decisão de escolher quem iria ficar com um ventilador, não tivemos de tomar a medida drástica de não poder sair (nem para o passeio saudável), muitas pessoas puderam trabalhar a partir de casa… Porque é que tivemos de fazer isto tudo? Porque este vírus mata mesmo e não termos forma de o matar. Por isso, a alternativa que nos restava era a de nos isolarmos para travar a propagação do vírus.
Saímos do estado de emergência e entrámos em estado de calamidade. Aos poucos a vida vai-se refazendo porque, não é preciso ser demasiado inteligente para chegar lá, se por um lado este passo pode ser dado mas, não nos esqueçamos, o problema não está resolvido e, como se tem dito, pode até vir um refluxo e deitarmos tudo a perder.
A Igreja portuguesa (e um pouco por todo o mundo), desde a primeira hora, não só aconselhou os católicos a “portarem-se bem” e obedecerem às recomendações de quem percebia do assunto, como deu um exemplo de humildade a fazer o que nunca se tinha visto nem pensado, que foi suspender a presença de fiéis nas celebrações. E se, por um lado, foi uma decisão-limite que entristeceu toda a comunidade cristã: como deixar de celebrar o Domingo e a Páscoa sem a comunidade?, por outro lado, os padres-pastores, foram criativos e não abandonaram o seu rebanho: transmissões em directo a partir da Internet, proximidades virtuais, apoio aos mais pobres… Esteve à atura quer da sociedade quer da própria fé. Os católicos confinados não foram nem proibidos nem impedidos de celebrar a sua fé e, mesmo privados da comunhão sacramental, souberam unir-se espiritualmente a Deus e aos irmãos. Deu para perceber que o mesmo Deus que procuramos na igreja também o encontramos em nossa casa e que a comunhão sacramental supõe sempre a espiritual. Deu também para sermos solidários com irmãos nossos que, por intolerância religiosa, perseguição, viverem num país não católico ou por falta de ministros ordenados, só podem celebrar a sua fé em casa e, em muitos casos, sem acesso à internet ou às Missas transmitidas pela televisão. Mais do que solidários deu para nos pormos no seu lugar e quem dera que passássemos a valorizar o que temos tão à mão e que às vezes só quando somos privados dessa riqueza é que damos valor.
Ainda não é possível, para já, que nos voltemos a reunir fisicamente em comunidade para celebrar a nossa fé. Porquê? Porque o maldito vírus é como o diabo, utilizando um texto de São Pedro, anda à nossa volta como um leão a rugir, procurando a quem devorar. E porque as nossas igrejas são lugares fechados e, graças a Deus, muitas delas com muita afluência de pessoas. Por isso, temos de esperar ainda um pouco. E volto a lembrar São Pedro, na mesma carta, quando pede que nós, cristãos, respeitemos as autoridades porque, praticando o bem, fazemos emudecer a ignorância dos insensatos. E é isto que se tem de fazer: respeitar as autoridades, que significa optar pela boa saúde e vida das pessoas (vida em abundância, ouvíamos no evangelho do domingo passado). Seria muito mau se as nossas igrejas fossem focos de contágio e que os cristãos dessem mau exemplo e fizessem falar os outros por maus motivos.
É bom que nos custe não podermos ainda reunir-nos. É mau que sejamos imprudentes.
Tudo tem o seu tempo e o nosso tempo voltará. Nada nos pode separar de Cristo: nem o coronavírus nem as medidas que nos foram impostas por causa dele. Se calhar até nos aproximaram mais de Deus e dos outros.
Recuperei um texto do cristianismo primitivo (século II) que nos mostra como os primeiros cristãos viviam e como é que nós devemos viver. Eles eram perseguidos, nós não. Eles não tinham liberdade de culto, nós temos. Eles não eram especiais diante da sociedade, nós não temos de o ser. Aparentemente tão iguais aos outros, mas, na realidade, tão diferentes de todos. Aqui o deixo para nossa inspiração e modo de agir no mundo e com os outros:
Os cristãos não se distinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes. Nem, em parte alguma, habitam cidades peculiares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular. Nem uma doutrina desta natureza deve a sua descoberta à invenção ou conjectura de homens de espírito irrequieto, nem defendem, como alguns, uma doutrina humana. Habitando cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu regime de vida político-social.
Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira. Casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os neonatos. Servem-se da mesma mesa, mas não do mesmo leito. Encontram-se na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram na terra e são regidos pelo céu. Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas: amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, ainda assim, condenados; são assassinados, e, deste modo, recebem a vida; são pobres, mas enriquecem a muitos; carecem de tudo, mas têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, recebem a glória; são amaldiçoados, mas, depois, proclamados justos; são injuriados e, no entanto, bendizem; são maltratados e, apesar disso, prestam tributo; fazem o bem e são punidos como malfeitores; são condenados, mas se alegram como se recebessem a vida. Os judeus os combatem como estrangeiros; os gregos os perseguem; e quem os odeia não sabe dizer o motivo desse ódio.

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