O cristianismo é mais que uma religião


José Saramago (1922-2010), numa entrevista-diálogo com José Tolentino Mendonça, publicada pelo jornal Expresso em 25/10/2009, a propósito do seu livro “Caim”, diz a certa altura: “Eu sou aquele que diz que, embora seja ateu, estou empapado de valores cristãos”. Não era a primeira vez que José Saramago usava este tipo de expressões. Numa outra entrevista, Saramago expõe de uma maneira mais clara o seu pensamento sobre uma “mentalidade cristã”. Nas suas palavras: “Eu, às vezes, digo que, no plano da mentalidade, sou um cristão, e não posso ser outra coisa. Quando Pessoa diz ‘não ter Deus já é ter Deus’ ele está a pôr a questão ao contrário porque ninguém começou por não ter Deus. Todos começamos por ter Deus e conservamo-nos assim”. É, então, inegável – e não só por Saramago o ter dito – que a nossa cultura e mentalidade ocidental é (ainda) profundamente cristã. Negar isto seria como negar que tivemos avós ou tios. Reparemos em alguns exemplos práticos: férias de Natal…, férias da Páscoa…. até o Carnaval é culturalmente cristão, porque até a própria palavra o denuncia: Carnaval vem do latim ‘carne vale’, adeus à carne, e porque o rigor da Quaresma proibia qualquer atitude de festas e folias e obrigava aos jejuns e abstinências, as pessoas começaram a despedir-se, dizendo adeus à carne. Mas este foi só um parêntesis para se perceber que, de facto, a nossa sociedade muito deve ao cristianismo, apesar dos seus grandes erros do passado e do presente. A vida de uma família, apesar de se escrever muitas vezes com as coisas edificantes, também tem os seus reveses, os seus momentos mais cinzentos e escuros que ficam nas entrelinhas; todos nós sabemos que não há bela sem senão e a Igreja católica não é excepção, porque é constituída pelos mesmos homens e mulheres que habitam no nosso mundo. Deveriam ser melhores, mas são tão iguais aos outros na fragilidade e no erro. Mas não quero defender a Igreja Católica, que ela não precisa que a defendam, mas sim que a compreendam. Há uns anos li um livro que tinha este título: “O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica”. Ali percebi não só que o cristianismo foi transformando o mundo actualizando a mensagem e os valores do seu fundador, Jesus Cristo, mas também apoiando e promovendo a arte e a cultura, a defesa dos direitos humanos e a chamada “pastoral social/caritativa”. Que interesse teria a cidade de Roma sem o cristianismo? Como seria bem menos interessante a nossa cidade de Lisboa sem a sua Catedral ou sem os Jerónimos (com os pastéis incluídos, porque a receita era dos monges jerónimos) … Que poesias diríamos ou que canções iríamos cantar no Natal? Onde nos poderíamos maravilhar com obras de arte, clássicas ou contemporâneas, se o cristianismo não tivesse contagiado o mundo com a sua presença? Por isso, o cristianismo, quer queiramos ou não, tem sido uma mais-valia para o nosso mundo. E se no campo cultural e artístico conseguimos reconhecer a presença e a importância do cristianismo, a nível humano ele não se esconde. O que seria das pessoas que a nossa sociedade vai descartando e colocando nas suas margens? A quantidade de Associações, Legiões, Centros paroquiais que se ocupam dos que nada têm? Procuremos instituições que cuidem de crianças abandonadas ou maltratadas pelas famílias, procuremos lares sociais de idosos, procuremos associações que cuidem das pessoas mais pobres e sem abrigo das nossas cidades… e aí encontraremos cristãos ou pessoas de boa vontade que se identificam com os valores humanos e cristãos e que cuidam de quem foi descuidado. E se perguntarmos a todo esse mundo sócio caritativo, porque é que acolhem ou vão ao encontro destas pessoas abandonadas, a resposta não será a do lucro (até porque praticamente não têm lucros), mas muito provavelmente o gosto de fazer o bem, o desejo de promover e dar dignidade à vida humana, a ambição de tornar este mundo mais humano e menos injusto. O voluntariado, para a maioria dos cristãos, não é uma lavagem da consciência para não dizer que não se faz nada, não é só uma questão humanitária ou de altruísmo… o sentido do voluntariado para a maioria dos cristãos é porque encontram numa criança abandonada, numa pessoa sem-abrigo, numa família de refugiados o rosto do próprio Cristo. E é legítimo que assim seja. A Semana Santa que estamos a viver e a Páscoa que se aproximam não é (e ainda bem) património exclusivo dos cristãos. Nas várias cidades da nossa Europa, as celebrações da Páscoa não acontecem só dentro das igrejas. As procissões, festejos e tradições convocam multidões de pessoas, mais ou menos praticantes, e não deixam ninguém indiferente. Aliás, o bom das multidões é que não se consegue perceber quem tem mais fé ou mais devoção; só ficamos a saber que estão lá porque algo as moveu, seja a curiosidade, o espectáculo, a tradição, a fé, ou tudo junto. Há uma religiosidade, uma espiritualidade que ultrapassa os adros das igrejas e devem merecer, da parte de todos, o respeito e a tolerância. Há ainda uma dimensão da presença do cristianismo no nosso mundo que não se pode esquecer ou desvalorizar, que é o apelo constante à justiça, à paz e à ecologia. Também aqui o cristianismo tem sido um motor inegável na construção de um mundo melhor. Pensar que a primeira vez que a Igreja Católica se pronunciou na defesa dos direitos humanos foi em 1511, nas actuais Caraíbas, pela voz de um dominicano, António de Montesinos, que ao ver o modo como os colonialistas tratavam os indígenas os enfrentou num famoso sermão que leva o seu nome, perguntando aos exploradores se aquelas pessoas que eles tratavam como animais não eram também seres humanos. Pensar que desde 1891 com o Papa Leão XIII, a Igreja assumiu oficialmente um compromisso sério com as questões da justiça social, não só denunciando situações de injustiça laboral e defendendo os explorados e os mais pobres das nossas sociedades. Coloco esta data como referência porque vem na sequência do movimento da Revolução Industrial, mas é óbvio que o cristianismo desde as suas origens se envolveu nestas causas, mesmo que nem sempre de uma forma tão visível. E como não falar do actual líder da Igreja Católica, o Papa Francisco, que tem sido um modelo vivo da mensagem de Jesus Cristo? A sua preocupação com o meio ambiente, a casa comum, não só por palavras, mas também com acções concretas e apelos constantes a cuidarmos deste mundo grande e belo, onde todos cabemos e que nos foi dado para cuidar e não para estragar? Ou a sua intervenção directa no problemático tema das migrações, dos refugiados ou das pessoas sem-abrigo? E ainda nos constantes esforços e apelos à paz na Ucrânia, e a convocar toda a humanidade para uma fraternidade universal e para uma amizade social. Como ele escreveu, e bem: “Precisamos de fazer crescer a consciência de que, hoje, ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém. A pobreza, a degradação, os sofrimentos dum lugar da terra são um silencioso terreno fértil de problemas que, finalmente, afectarão todo o planeta.” Não sei se na Europa o cristianismo está para ficar. Sei que em algumas zonas do mundo ele está bem vivo e bem vivido, como na América do Sul ou na África; sei que noutras zonas do mundo ele é perseguido e martirizado, como na Coreia do Norte ou em alguns países do mundo árabe; sinto que na Europa o cristianismo está morno, em agonia, usando a expressão de Miguel de Unamuno. Se ao olhar para o nosso mundo o vemos tão injusto e incompreensível, como é que ele não estaria sem a presença dos cristãos, que se esforçam por elevar o mundo? Boa Páscoa!

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