Projectos inacabados

Ao olhar para o passado da minha vida vejo que ela tem tido muitos projectos inacabados. Se, por um lado, me orgulho de alguns projectos que pus em marcha e que, sempre que possível, os levei a bom termo ou entreguei a outros para que o continuassem, há outros, mais pequenos, que me dariam imenso prazer conclui-los mas que, por desleixo, desmotivação ou outro mecanismo sub-consciente, uns ainda começaram mas outros, infelizmente, só ficaram mesmo no desejo. Como o de escrever sobre pessoas admiráveis que passaram pela minha vida e que gostaria de não me esquecer delas. As memórias do meu avô paterno, por exemplo, da D. Maria José, leitora e ministra da comunhão em Marvila, a D. Secunda, zeladora incansável também em Marvila, e alguns frades, dos quais tenho memória mais viva.
Mas uma dessas pessoas é a tia Maria Piedade, de Feirão, que tanto influenciou na minha piedade popular de Feirão, de quem sinto obrigação hoje de escrever. Era como uma profetiza, sempre a chamar o povo à oração e aos bons costumes. Nunca se ouviu cantar uma canção profana ou nalgum grupo de mulheres a falar da vida de alguém. Nunca se ouviu falar alto, mesmo se tivesse de chamar alguém ou alguém a chamasse. Em todas as conversas metia Deus: bom dia nos dê Deus, se Deus quiser, bendito seja Deus, vai com Deus… Franzina, vestida com as roupas típicas da aldeia, coloridas mas não exageradas, andava sempre de lenço, avental e tamancas. Era o pilar religioso da aldeia. Era sempre a primeira a ir para a igreja e a chamar para ela, a ensinar o catecismo e à prática das virtudes. Quase todas as crianças dos anos sessenta aos anos noventa foram por ela catequizados. Sem saber ler nem escrever. Há poucos anos soube das suas origens, muito pouco históricas mas com um fundo de verdade: alguém que não devia engravidou a mãe dela e, para abafar o caso, levou a rapariga para Feirão, onde esta menina, cujo nome lhe assenta que nem uma luva, Maria da Piedade, vai crescer, não sabemos se sabendo ou não quem era o pai. Não havia ninguém em Feirão que tivesse um ai a dizer da tia Maria Piedade. Sem saber uma letra sabia muito de Deus, como já deu para ver. A sua teologia não estava nos livros mas sim nos bancos e genuflexórios da igreja.
Naqueles tempos - eu já apanhei os finais - de madrugada, ao nascer do sol, o povo reunia-se na igreja para louvar a Deus pelo dia começado. O sino tocava bem cedo (ainda hoje toca e não sabemos por quanto tempo) para o povo se levantar. Ninguém se levantava antes do sino tocar, a menos que se tivesse de ir à vila ou houvesse outra jornada mais comprida. Não havendo relógios na aldeia, creio que só o regedor tinha relógio, o toque do sino estava muito ao sabor de quem o tocava, que se devia regular mais pela luz do horizonte que no cantar do galo. Quinze ou vinte minutos depois começava o culto da manhã na igreja de Feirão. Era sempre assim, todos os dias do ano. Juntavam-se homens, mulheres e crianças. Talvez, além do motivo religioso, houvesse também uma espécie de contagem do povo, se estavam todos ou faltava alguém… mas louvava-se a Deus. Quem saía mais cedo e ouvia tocar o sino, estivesse onde estivesse, fosse aonde fosse, deixava a conversa e rezavam umas “gracinhas”. À noite a mesma coisa: tocava o sino, quem estivesse em casa e livre ia à igreja rezar o terço e só depois se jantava. Quem não pudesse ir à igreja parava e rezava. Se houvesse tempo rezava-se o terço, se não houvesse tempo, ao menos umas “gracinhas”. E tudo com muita naturalidade e fervor.
Mas voltando a esta devota senhora, foi sempre muito religiosa mas muito pouco amiga dos padres. Reverenciava-os pelo poder sacramental que tinham, mas pouco mais. Fomentava as vocações, como eu bem senti, promovia as devoções todas e mais algumas, sem exageros nem beatices. Na Semana Santa, em que o padre só ia rezar a missa no dia de Páscoa, as orações e tradições eram bem cumpridas. Depois eram as devoções mensais: mês de Maria, mês do Sagrado Coração de Jesus, mês do Rosário e mês das Almas. E a tia Maria Piedade, do que sabia de cor, rezava, e das meditações, sempre as mesmas, do mesmo livro usado, mandava ler as crianças. Zeladora da casa de Deus, a tia Maria Piedade tinha o crédito do povo porque a mesma pessoa, devota na igreja, era virtuosa nas ruas da freguesia. Vivia da venda, como tanta gente pobre de Feirão. Quem tinha terras já vivia bem, quem as não tinha tinha de se fazer à vida. De madrugada, bem cedo, ela ia ao Barreiro buscar o pão para depois o vender. Não tinha nem gado nem terras - só tinha um pequeno campo anexo à casa - vivia pobre e dignamente do seu trabalho e talvez da partilha do povo. Nunca lhe faltou nada. Morreu velhinha e soube-se logo porque numa manhã o sino tocou, o povo foi rezar e a tia Maria Piedade não estava. Foram a casa dela e já tinha partido. O corpo, deitado na cama, como se estivesse a dormir; a alma, essa, já junto do Deus que na terra adorou e serviu. A casinha, pobre e humilde, deixou-a à igreja. A rua, quando se começou a dar nomes às ruas em Feirão (finais dos anos 80), ficou a chamar-se de Santa Luzia, orago da freguesia e da sua devoção. A igreja não tomou muito conta da casa, que quase ruiu, até que, há poucos anos, foi comprada e arranjada por um filho da terra.
Como esta, há outras vidas que mereciam a minha atenção mas este é, infelizmente, um dos meus muitos projectos inacabados.

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