As memórias que este dia me traz


Tendo morrido o meu avô materno em Feirão e lá sepultado, tornou-se obrigatório, como naqueles inícios dos anos oitenta, vir à terra aos Santos. Não sei porquê mas acompanhei várias vezes a minha avó e agora que cá estou, tudo me vem à memória com doçura e lucidez. Eram poucos os dias, três no máximo: vínhamos de Lisboa no dia 31 de Outubro - sempre numa carrinha que nos trazia a nós e a mais algumas pessoas - e regressávamos no dia 2 ou três, conforme fosse o feriado.

O ritual era simples: no dia trinta e um ir ao cemitério, lavar a campa, pôr flores - aqui diz-se compo-la - acender a vela e assim se fechava o dia. A casa de Feirão, já de si inóspita - naquele tempo a casa estava ainda por acabar - a juntar ao frio e às chuvas que pela serra de Montemuro fazem questão de aparecer nestes outonos, fazia com que só estivéssemos na casa de cima, a mais arranjadinha, com camas velhas vindas de Lisboa, para dormir. Os serões eram em casa da tia Lurdes, que era tão tia como todas as outras mulheres da aldeia que já tivessem alguma idade, à volta da lareira, onde se lamentava a vida mas também se recordavam os feitos do passado, naquele tempo tristes mas agora recordados com saudade. Matava-se a curiosidade sobre o presente, com perguntas indirectas para tentar "tirar nabos da púcara". Era uma conversa entretida e entremeada. Eu, miúdo, ali ficava, a ouvir ou não, se calhar mais entretido com a fogueira do que com a conversa. E se não era na casa da tia Lurdes era na casa da tia Laura, essa sim, tia, já tia da minha avó, que vivia numa casa espantosa de simples mas muito acolhedora. Ao contrário da casa da tia Lurdes, esta ficava num primeiro andar, muito típico destas zonas porque, em baixo, ficava o gado. As paredes, pretas do fumo, a cozinha a um canto - entenda-se cozinha como uma lareira rebaixada no soalho onde se cozinhava ao lume. Num outro canto da casa a cama do casal e do outro a pequena mesa de jantar. O acesso à casa já era através de um quinteiro e de umas escadas que dava gosto subir: sem um prego ou armação, era mesmo pedra sobre pedra.

Entre estas duas casas se passavam os santos. Ora se comia numa ora se aquecia e conversava noutra e dormíamos na nossa fria casa. E eu sempre com a minha avó.

No dia 1 era obrigatória a Missa e a ida ao cemitério. Tudo na igreja, pequena que era para a tanta gente que estava e que vinha, as mulheres começavam os cânticos antigos, tudo com a devoção possível e o padre que devia falar, suponho eu, dos santos que nos protegiam e dos defuntos que vínhamos recordar. O tecto da igreja de Feirão era na altura forrado com imagens de santos, que tanto sempre gostei e que me entretinha a ver. No fim de Missa, ida ao cemitério. O sacristão vestia a opa vermelha e entregava mais duas a dois homens que levavam as lanternas. Outro levava a caldeirinha e o padre ia à sacristia tirar a casula e ficar só de estola. Quando o padre chegava ao cemitério já as famílias estavam perto das campas dos seus familiares. Eram inevitáveis as lágrimas que corriam, umas mais silenciosas que as outras. Cantavam-se cânticos a condizer com o momento, o padre rezava os responsos e as pessoas acompanhavam. Depois, o padre, com o seu ar solene, rociava as campas com água benta, enquanto os cânticos lembravam aos vivos que a morte era certa e a hora incerta e tínhamos de nos emendar, para não morrer para sempre. Era naquele tempo mais medo que temor... agora nem uma coisa nem outra.

Ao fim do dia o povo ainda se reunia para rezar o mês das almas. Prática ancestral em Feirão, em vários meses do ano: Em Maio o mês de Maria, em Junho o mês do Sagrado Coração, em outubro o Mºes do rosário e em Novembro o das Almas. Tocava o sino e a igreja voltava a encher. Rezava-se o terço das almas, que de por si já era rápido, a juntar à rapidez das pessoas; depois uma rapariga que soubesse ler, lia a lição do dia - cada dia tinha uma lição - e quem fosse tocar às Trindades subia a tocar, as pessoas rezavam e voltava tudo para as lareiras, para jantar. Com uma maioria de pessoas analfabetas mas interessadas tinha que se ler bem para as pessoas perceberem.

No dia dois, já com menos gente, lá vinha o padre rezar a missa dos defuntos. Como neste dia os padres podem celebrar três missas, é assim a tradição antiga, neste dia e no dia de Natal, o padre rezava a primeira missa em Gosende e as outras duas e Feirão. E o povo assistia à segunda missa com a mesma devoção da primeira.

E quarenta anos depois, cá estou eu, em Feirão, a cumprir o que considero um dever. Não é obrigação mas sim respeito e devoção. Continua tudo igual menos a minha avó, a tia Lurdes e a tia Laura que, apesar de estarem já na terra da verdade, continuam vivas na minha memória. A casa melhorou e já não é preciso andar de casa em casa. Também já temos lareira, o que ajuda a minorar o frio gélido da casa e da serra. Os rituais mantêm-se tal e qual, como acabei de descrever. Hoje lá fui acender a vela à campa do meu avô e amanhã, se Deus quiser, celebrar a Missa e ir aos cemitérios, que entretanto são dois. E no dia dois, a missa própria dos fiéis defuntos. O mês das almas, entretanto, por redundante que pareça, morreu.

Assim era e assim é. Não sabemos por quanto tempo será.



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