Divergências no fado

Gosto de ouvir cantar o fado mas, confesso, para mim, os verdadeiros fadistas já morreram quase todos. Bem, um ainda vive, que admiro, o Vicente da Câmara. Os contemporâneos têm a sua piada, alguns até devem ser louvados pela inovação que tentam trazer à interpretação mas, como digo, dos vivos, ninguém consegue substituir a eterna Amália ou o Alfredo Marceneiro, Teresa Tarouca ou ainda a Hermínia Silva (tenho mais na lista...). Já a minha mãe pensa de maneira diferente. Diz que gosta de ouvir os fados na voz de quem os imortalizou mas outros também os cantam bem. Eu não sou assim. Nalguns casos nem consigo ouvir outras vozes a cantar fados que só ficam bem naqueles que os interpretaram. Pior é quando agora, nas escolhas da voz, tentam imitar os originais... imitações baratas. Quem canta, bem como quem lê, deve interpretar e não se contentar em imitar... Alguns exemplos: haverá alguém que cante tão bem o fado das tranças pretas como o Vicente da Câmara? Ou alguém que cante tão bem o fado Lágrima como a Amália? Ou o fado da Tendinha, cantado pela Hermínia? Ou ainda a casa da mariquinhas cantado pelo Marceneiro? Não, não há. Pelo menos para mim. É um bocado como aquelas comidas que as nossas avós faziam e que, depois, passaram para as nossas mães e tias mas, quando as comemos dizemos: ah, a avó é que fazia isto bem. Pois é, sinto o mesmo com o fado.
Este ano, nos caminhos de Feirão, com a minha mãe, ouvíamos rádio e, à mercê da antena e das rádios locais (embora não seja este o lugar nem o post, devem ser louvados pelo trabalho de proximidade entre locutores e ouvintes) de vez em quando lá apareciam uns fados. Quando os fadistas originais cantavam algum fado ela abanava com  a cabeça, a dizer que sim, como se os estivesse a provar e a aprovar o modo de cantar. Se eram outros que cantavam, cantava com eles e, no fim, dizia: também canta bem mas fulano de tal é que é.
No tempo em que não havia gravação de voz, todos estes caprichos estavam resolvidos: morria a pessoa calava-se a voz, imortalizava-se numa ou duas gerações que recordavam a voz e os trejeitos, entretanto alguém vinha e pegava de novo no fado e a coisa. Alguém sabe como é que a Severa cantava? Não. Ficou com a fama de "fundadora"  grande cantadeira do Fado mas, como não se imortalizou a voz, só se sabe que viveu na Rua do Capelão e que cantava numa taberna... com os mortais que imortalizamos, graças aos cds e youtubes, conseguimos manter viva a voz que a morte quis calar mas que as gravações mantêm viva.
Uma boa homenagem à grande Amália foi o renascimento da Rádio Amália. A minha mãe está sempre lá sintonizada, alternando com a rádio Sim. Faz-lhe companhia e faz-lhe bem. Foi na Rádio Amália que descobri novos fados de Amália e de outros, que não sabia da existência e, admirado fiquei, quando a minha mãe, numa das viagens, me mandou calar quando a Teresa Tarouca começou a cantar o "Meu bergantim". No fim disse-me que era o fado que o meu avô mais gostava e que ele, quando ouvia os acordes, mandava calar toda a gente.
Voltando à Amália e para terminar. Ando numa re-descoberta de Amália Rodrigues. Num destes dias ouvi na rádio, pela segunda vez um fado dela que tinha ouvido por Feirão mas que não tinha reparado nele nem fixado o nome: Ó pinheiro, meu irmão. Letra dela, fala da efemeridade das coisas. Trata o pinheiro por irmão. A segunda estrofe é a mais engraçada e bem verdadeira: "Até a lenha do monte / Tem a sua separação: / Duma lenha se faz santos / e d'outra lenha se faz carvão". E, agora, silêncio, que se vai cantar o fado.

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