Vender a vida

Escrevo o post mil deste blogue. Durante a semana tentei deixar aqui alguma coisa que fosse significativa mas não tive sucesso. Ainda ontem aqui vim tentar escrever uma oração ao Agricultor das nossas vidas mas também não tive inspiração suficiente para fazer correr o texto.
Mas hoje, baseado numa notícia que li, decidi escrever sobre um tema que, não honrando o número mil não deixa de (me) nos fazer pensar.
Por aqui começo. Quando me procuraram para editar o livro "Retalhos da vida de um padre", dizia para comigo: nunca pensei que a minha vida pudesse vender.
Mas o título e o motivo deste escrito é outro: trata-se de vender a vida sem mais, nua e crua, doa a quem doer e sofra quem tiver que sofre. É pior que as tragédias gregas, que educavam e edificavam, mostravam a dimensão ética da vida, a sua grandeza e a sua classe.
A notícia que li esta manhã é que a vida da mãe do Cristiano Ronaldo (a partir de agora CR7) ia sair em livro. Até aí tudo bem. Mas a coisa muda quando "confessa" que o CR7 não era para ter nascido, ou melhor, que ela tentou tudo por tudo para abortar mas não deu certo. Ora, isto, a meu ver, ultrapassa os limites de quem se acha uma "Mãe coragem", como acabaram por baptizar a biografia de Dolores Aveiro. Dizer isto sobre um filho? Mesmo que tenha sido verdade... Ainda assim. Há limites para tudo e para a senhora Dolores Aveiro também. Que glória pode ter uma mãe, agora orgulhosa do seu filho, que tentou na sua génese acabar com ele? Glória tem o médico que, ao que parece, não aceitou fazer o aborto à senhora. Que ela dissesse que não estava à espera de engravidar, que foi difícil devido a tudo o que estavam a passar, ainda é como o outro; dizer num confessionário não saía das paredes da igreja, mas escancarar pormenores destes num livro... Aqui estou do lado do CR7 quando perguntou à mãe qual a necessidade de ela expor a sua vida... E, de facto, não havia necessidade. E isto não é tragédia nem coragem; é obscenidade. Sim, palavra forte, esta, mas que diz bem a atitude: mostrar o que não se deve, ou então, para sermos mais rigorosos nas definições, aquilo que é obsceno deve ser afastado da cena. Não por vergonha, mas por pudor e por dignidade. Vir dizer a público, escrever num livro que um filho (Ronaldo ou não) nasce porque não conseguiu abortar não se diz nem se escreve. Como "Mãe coragem" que se quer ser, guarda-se, fica para sempre afastado da cena.
Mas, infelizmente, esta família não se fica por aqui. Mesmo na riqueza Também a irmã do CR7, Kátia Aveiro, que foi para as terras de Espanha participar num concurso de sobreviventes - para ela não era estreia porque, ao ler o livro da mãe em que se fala de um pai ausente, das dificuldades todas da vida, a que ela sobreviveu - também lhe puxou o sentimento e contou sobre a sua difícil infância. Vou traduzir da notícia espanhola que li o que ela desabafou: "Uma coisa que não faltava na nossa casa era pão. A minha mãe comprava e pagava o pão no fim do mês. Eu comia fiambre de quinze em quinze dias e carne só aos domingos. Durante a semana comíamos só pão com manteiga e a minha mãe fazia sopa. Quando comíamos frango era uma festa lá em casa". Não faltaram comentários de que agora tinha de fazer dietas para emagrecer! E lá volta o CR7, eu outra vez a dar-lhe razão, a dizer que não apoia a estada da irmã no concurso.
Mas nem tudo é assim. Conto, para finalizar e mudar de registo e de família, um outro episódio, uma apresentadora de um programa que, ao ser homenageada, acaba por contar o seu passado, numa conversa inesperada, e em que diz ter passado fome. Que ia com a mãe à Caritas buscar comida para poderem comer. Mas, depois, disse ela aos espectadores: não quero de maneira nenhuma dizer que fui infeliz, ou armar-me em vítima. Que há cinquenta anos eu tivesse passado fome não me envergonha, era a situação de "media España". Vergonha é hoje, em Espanha, trezentas mil crianças (!) passarem fome. Disse-o e foi aplaudida. E isto, sim, é tragédia, no bom uso da palavra. É dizer solenemente, na boca do palco, que a vida conquista-se com dignidade e educação. E que a carestia no passado não nos deve levar aos excessos do presente.
Digo muitas vezes que todos nós temos um passado. Eu também tenho o meu. Graças a Deus, e contrariando a vida dos meus pais e avós, não passei fome. Mas admiro, por exemplo, e só como exemplo, casais que em tempo de fome tiveram sete, oito e dez filhos. Que sempre amaram os filhos que, mesmo inesperados, vieram a nascer. "Os filhos são uma bênção do Senhor, o fruto das entranhas uma verdadeira dádiva", lê-se na Bíblia. Acolher um filho e cuidar dele é coragem. O resto é vender a vida.

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