O (meu) cântico de Páscoa

Meu está entre parêntesis porque na verdade o cântico que aqui vou escrever não é meu, ou melhor, é também meu porque quem o escreveu fê-lo para ser partilhado.
Falo do frei José Augusto Mourão, que faleceu em 2011. Não é uma figura de renome mas reconhecida por quem é de renome. José Saramago dedica-lhe umas frases no seu Diário, o Cardeal Tolentino Mendonça reconheceu nele uma pessoa de peso, mesmo que não de visibilidade. Cito o início de um texto que ele escreveu por ocasião da sua morte: "Um dia, quando se fizer a história do catolicismo português que nos é agora contemporâneo, há-de ver-se, em toda a clareza, que um dos seus actores magistrais foi, afinal, um frade e poeta, quase clandestino, que morreu esta manhã em Lisboa". Para os que convivemos com ele atencipámo-nos à história, tornando-o presente nas nossas vidas, seja pelas releituras, seja pelas letras de cânticos que no Convento de São Domingos se vão cantando.
Reconheço que a acessibilidade seja difícil, até porque o vulgar tem mais sucesso fora e dentro da Igreja. O que reconheço também no frei José Augusto foi a sua capacidade criativa, com palavras difíceis, imagens nem sempre decifráveis à nossa mente, mas, como ele dizia: baixar o nível é prostituir-se. E é verdade. Não se pode pedir a quem cria que baixe o nível, tem que se exigir ao receptor que eleve o nível. Por isso, se acha que as "missas dos jovens" são mais animadas que as "Missas de órgão" ou as "de gregoriano". Fiéis são os que não cedem e mantêm um elevado nível de qualidade litúrgica, que não passa por repetir sempre as músicas dos anos 60 ou 80 mas sim por tornar a música litúrgica criativa, mesmo que mais difícil de compreender.
Há afinidades, claro que há, e é bom que as haja. Um pintor atrai-nos mais que outro, um compositor faz-nos vibrar mais que outro mas não podemos cair no erro de que só é bom quem eu gosto.
Tudo isto para trazer hoje aqui um poema de José Augusto Mourão que adaptou para uma música pascal. Talvez por nunca ter conseguido encontrar um compositor à altura das suas inspirações, teve que inverter o processo inspirativo de tentar colocar as suas letras em músicas vivas aprendidas em França, nos nossos conventos, quase todas elas do também inspirado André Gouzes. André Gouzes teve a grande graça de ter ter os textos inspirados e, a partir deles, fazer as suas composições musicais; José Augusto Mourão não teve a graça de, em vida, ter um compositor que desse corpo aos textos que escrevia.
O título do Poema é "Roda das crianças". A música de André Gouzes é para a liturgia baptismal mas frei José Augusto Mourão com este poema, deu-lhe uma intensidade pascal. Porque a letra continua actual aqui deixo, nesta semana de Páscoa, o (meu) cântico de Páscoa:

Creio no meu Deus dançando
cristal na madrugada.
creio no amor ligando as mãos
varrendo o medo.

Dançai na profusão
das luzes que acendeu
aquele que atravessou
a morte e a venceu.

Alargai a roda, entrai
o fogo vos aqueça os olhos desta luz
é passar da morte
o Cristo por nós lá passou.

Enchei de azul os olhos
cantai de viva voz
o Deus que faz partir
e liga o riso e os nós.

Esteja o vosso corpo alerta
para as lides do mar
navegue a vossa vida aberta
se a noite vos rondar.

Saltai o escuro rio
o cego mar das dores
com Deus que nos abriu
o arco-íris das cores.

Já não tem razão o mundo
de nos pensar murados
ao grilhão da morte, o fundo
do terror, os dados.


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