Saber sofrer com esperança

Os tempos que vivemos são tempos que nos desafiam humanamente e ao nível da fé. O nosso olhar continua limitado, olhando só para o imediato sem grande capacidade de, em vez de perguntarmos o porquê podermos perguntar para quê?
O Cardeal Suenens, no seu livro «Vida quotidiana, vida cristã» (1965), dedica um pequeno capítulo à questão do sofrimento, vivido desde a fé e a esperança. Aqui o deixo para a reflexão desta quarta-feira santa.



Não tinha o Messias de sofrer essas coisas para entrar na sua glória? (São Lucas 24, 26).

O MISTÉRIO DA DOR

Ninguém escapa ao sofrimento. A dor acompanha-nos, passo a passo, do berço ao túmulo, como a sombra segue o próprio corpo, no caminho Custa-nos a compreender o que forçoso nos é chamar o mistério do sofrimento.
Quereríamos viver num mundo onde só fizesse sol: sombra - nunca. Se dependesse de nós, teríamos um mundo reduzido a duas estações: Primavera e Verão.
Seria o sofrimento um amontoado de folhas mortas?
Seria a rajada de vento frio e estéril, mau e hostil, vindo não se sabe donde? Conheceis tão bem como eu o que traz o Inverno às florestas: árvores que parecem sem vida preparam a nova subida da seiva; ramos mortos que Se cortam vão tornar possível que nasçam outros ramos. Inverno não é morte, é preparação da vida; o Inverno não é um termo, antes é terreno produtivo onde se nutrem as frondes (ramagens) futuras; o Inverno não é desolação pura, mas expectativa, caminho obscuro, a noite que precede a aurora. O sofrimento na vida humana é semelhante ao Inverno e à alvorada. A sua função é essencial, se quisermos viver a vida cristã com plena seiva, se quisermos, como diz Jesus, dar fruto. «É preciso que morra na terra a semente, para o trigo germinar».
Sentimos isto, obscuramente, mas as explicações são difíceis. É vão explicar a um doente, abrasado pela febre, que tanto calor é sintoma da luta e da reacção que prepara o restabelecimento da saúde. Quando o enfermo sofre de mais, tomamos a sua mão em sinal de simpatia, damos-lhe a perceber que nos encontramos a seu lado, que decerto compreendemos as suas dores, que também as compartilhamos. Mas as palavras fazem mal porque parecem, nesse momento, demasiado superficiais e anónimas. O sofrimento é coisa tremendamente pessoal, quase incomunicável, quando profundamente afecta o ser. É preciso, às vezes, esperar um momento propício para falar.
Temos todos ainda presentes no espírito cenas dilacerantes de catástrofes recentes. Como interpretar e compreender tal soma de dores acumuladas e comprimidas? Esses lares desolados dum golpe? Essas vidas suprimidas em pleno voo? Nada se compreende, se realmente não passar, de efémera a vida humana, se findar na campa e não tiver além.
Para o que não tem fé, a dor é escura noite sem estrelas. Mas, para quem crê que neste mundo a vida é preparação para outra vida, que serve de prefácio e começo ao que virá, então começam luzes a brilhar na noite e logo se pode pressentir, que sendo embora o sofrimento passagem difícil de transpor, a vida se resolve em calor e claridade, que nos esperam além do túmulo.
O coração humano bem sente, em momento de luto ou separação, que na realidade é duradouro o amor que já uniu algum dia os membros de um lar; que sendo verdadeiro, nunca o amor morre, por ser qualquer coisa de Deus e Deus não morrer.
O coração humano crê, espontaneamente, que todos os mortos são sobreviventes, junto de nós, mais do que nunca presentes, no mundo invisível mas real que nos envolve.


O MUNDO INVISÍVEL

Nós, homens da era técnica, compreendemos agora melhor a existência de realidades invisíveis, muito próximas já do plano material.
Os nossos antepassados ficariam muito surpreendidos, se lhes dissessem que luzes e sons enchiam os seus aposentos, que bastaria dar volta a um botão, para captar as ondas emitidas pelo que nós chamamos hoje a Rádio e a T. V. Para tomar consciência destas realidades que nos cercam, basta agora abrir o nosso aparelho. O mesmo sucede com as realidades espirituais invisíveis: basta-nos abrir a nossa alma, na fé, para captar ondas desconhecidas, para entrar nesse reino de Amor inefável, que nem olho nem ouvido humano viu ou ouviu, nesse reino que supera todas as esperanças que jamais despertou em coração de homem, para entrar nesse reino de ternura e alegria, que Deus preparou para aqueles a quem ama.

DEUS PERTO DE NÓS

Mas a fé vai mais longe ainda; penetra mais fundo no mistério da dor: descobre que sofrer não é uma realidade surda e hostil, uma sombra vã, como um fantasma; mas uma realidade, ao mesmo tempo dolorosa e carregada de esperança, como dar à luz uma vida; uma realidade rica em virtualidades salutares e redentoras. O sofrimento muda de aspecto desde que se reconhece que não é uma realidade sem nome, mas uma presença de Deus operando, em nós e no mundo, grandes coisas. A fé mostra-nos o vivo amor de Deus, sempre oculto no fundo da dor. Amor velado, sem dúvida, mas amor pessoal e directo.
Oh! Não é difícil crer que Deus nos ama, quando tudo corre à medida dos nossos desejos. Mas é preciso bem temperada fé, para não vacilar, quando a procela desaba sobre a nossa barca.
E, contudo, o amor de Deus é mais instante e envolvente do que nunca, nas horas de amargura. Compreendemos tão mal os assaltos desse Amor que nos confunde! Resistimos à acção duma Ternura que nos quebra, para melhor nos inundar com a sua graça. Duvidamos de Deus, porque não temos a fé bastante forte para O reconhecer, então, sob as aparências, muita vez desconcertantes, em que se esconde. «Nós cremos, Senhor, - exclamavam os apóstolos - mas ajudai a nossa incredulidade». Podíamos retomar para nós, a mesma confissão e o mesmo apelo.
Se pudesse, assim, o cristão compreender as proximidades de Deus, no sofrimento que martiriza, quantos socorros não levaria ele ao seu irmão desorientado pelas provações e mergulhado no desespero! Ele o consolaria e o fortaleceria. Vá até junto dele, mansamente, e diga-lhe, conforme a linda expressão dum escritor: «a aurora começa à meia-noite»; vá, segrede-lhe que Deus trabalha na sua alma dorida, e que decerto um dia compreenderá as maravilhas, que sem ele saber, se preparam no íntimo do seu coração.

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