Saber calar

Nas narrativas da Paixão impressiona o silêncio de Jesus. Só fala para dizer a verdade - nunca para se defender ou desculpar - ou perguntar a um soldado que lhe dá uma bofetada o porquê de lhe bater.
Saber calar é uma virtude e uma arte. Deixo aqui a reflexão do Cardeal Suenens no seu livro de 1965 «Vida quotidiana - vida cristã» .

 

Mas Jesus nada mais respondeu, de modo que Pilatos estava estupefacto (São Marcos 15, 5).

VISÃO DE NAZARÉ

Teria sido uma família silenciosa, a Sagrada Família? Um lar de puros contemplativos? Ou uma casa como todas as outras, onde alternam o silêncio e a palavra, a prece e a conversação, o trabalho e o repouso? Tudo nos diz que seria um lar normal, como qualquer outro, onde se equilibram os silêncios e as palavras. A primeira impressão, todavia, é de silêncio.
Maria recebe do Arcanjo a mais prodigiosa das novidades: a Anunciação. O diálogo é breve. Uma pergunta essencial: «Como será isso?» Uma resposta: «Faça-se em mim, segundo a tua palavra». Depois, é o silêncio perante o mundo inteiro, até mesmo para com José, sinal de respeito por um mistério que o ultrapassa e que Maria deixa nas mãos de Deus
O Evangelho também nos diz, algures, que Maria guardava no silêncio do seu coração as palavras recolhidas, as alegrias então vividas.
Há uma virtude de silêncio, como há uma virtude vinculada à palavra: as duas virtudes devem praticar-se, alternadamente, segundo a oportunidade requerida. Na Igreja também há Ordens onde o silêncio é de regra: Carmelitas, Cartuxos, Trapistas. Continuam estes a grande tradição da vida silenciosa, contemplativa. Ao lado daquelas, há Ordens activas, que proclamam, alto e bom som, a mensagem de Deus, que o Evangelho nos convida a anunciar a todas as gentes. Vocações complementares, ambas magníficas. É o silêncio dos contemplativos que nutre a palavra dos apóstolos; no silêncio das alturas nascem as torrentes, para se precipitarem no vale e irrigar a planície.
Algo de semelhante se deve realizar em cada lar cristão. É preciso que cada um aprenda a calar e a falar, doseando com sabedoria palavras e silêncio.

O SILÊNCIO PURIFICA

Falemos da virtude do silêncio.
Calar: muito especialmente o que pode destruir a paz e a harmonia no seio da família. Pessoas há para quem é tão tentador repetir tal ou qual palavra irónica e ofensiva! Há gente que gosta tanto de andar com ditos e mexericos – de contar e ouvir o que se diz nas praças, nos cafés, nos salões mundanos.
Fala-se, muitas vezes, da necessidade de criar uma liga contra os ruídos. Mas também faz falta uma liga contra esses ruídos quase segredados, contra esses «diz-se», «dizem», «contam», que cavam a ruína da justiça e do amor, entre os homens. Não se faz caso do mal terrível que é a má-língua. É tão bem «aceite» o dizer mal do próximo! Isso faz, a tal ponto, parte integrante da conversação, que somos obrigados a insistir para pôr de sobreaviso contra esse pecado insidioso e subtil.
É micróbio deveras contagioso com muitas vítimas à sua conta!
Como é tentador desfechar um dito espirituoso, que vai ferir o coração como frecha envenenada! Como sabe bem repeti-lo numa conversa e obter um êxito fácil!
Comecemos, sem mais tardar, por eliminar nas nossas conversas o que separa os homens uns dos outros, o que os torna estranhos e inimigos, o que possa cavar fossos, entre eles, o que faça agravar diferenças ou divergências.
Resolvamos não desempenhar mais o papel de agentes de transmissão do mal, assim que nos apontem uma palavra ou um gesto desfavorável do próximo.
E saibamos refrear a nossa língua e a dos nossos filhos para não proferirmos palavras duras, de escárnio ou soberba, palavras, que possam ofender.
«Não julgueis» - disse o divino Mestre, não vos compete. E acrescentou, para ter a certeza de ser compreendido, que Deus nos julgará conforme julgarmos os outros. Não julgueis, deixai de transmitir o mal, cortai a corrente da maledicência que passa. Ah, que belos curtos circuitos esses! Mudaria a face do mundo, se todo o cristão desempenhasse o seu papel, nessa cruzada de caridade simplesmente negativa, eliminatória. Que saneamento de atmosfera teríamos, se cada um guardasse para si todas as maledicências que lhe confiam ou apanha no ar! As palavras pérfidas são moscas infecciosas, que voando levam longe a epidemia. Hão-de dizer: «Como quereis que se matem as moscas? Elas são tantas!» Num país imenso como a China, os comunistas, por meio de campanha metódica e encarniçada, conseguiram, ao que parece, exterminar as moscas que o infestavam. É uma questão de disciplina pessoal e, na circunstância, de caridade social. Que semelhante exemplo nos instigue a declarar guerra insecticida a toda a infecção verbal que deploramos, a fim de tornar respirável o mundo em que vivemos.
Não basta só repudiar tudo o que perturba as relações entre os homens, é preciso também suscitar, positivamente, tudo quanto os aproxima.

A PALAVRA QUE PODE UNIR

Incumbe-nos procurar o que faz unir, descobrir o fundo comum da boa vontade entre os homens. São de recordar estas palavras do marechal Lyautey: «Há entre os homens, muitas mais, vezes do que se julga, penso eu, um denominador comum. É como na aula. Escrevem-se enormes números fraccionários, que parecem inconciliáveis, mas sabe-se por meio de certas operações aritméticas, por eliminações sucessivas, que se chega a encontrar o seu denominador comum, que vem a ser um pequeno algarismo simplicíssimo, que nada fazia prever naquelas intrincadas complicações. Talvez eu seja de carácter optimista, mas parece-me que deve ser fácil encontrar, em todas as coisas que dividem, o denominador comum».
Quer seja ou não fácil, temos de ser instrumentos de união entre os homens. Devemos pedir o dom de sermos semeados de paz. É uma graça que nos transmitirá com alegria a Virgem Santíssima, se Lha pedirmos, por ser um dos frutos mais directos de toda a comunhão de alma com Ela. Maria tem coração de mãe para com os Seus filhos, que são os homens. As mães têm delicadezas de caridade, requintes de ternura e de cuidado que sempre as levam a encobrir as faltas dos filhos.
Na medida em que forem um só, o nosso e o seu coração, ocultaremos pois as más acções do próximo, ou se nos virmos forçados a revelá-las, não diremos o nome do culpado, ou ainda, se não pudermos furtar-nos ao dever de o dar a conhecer, só referiremos as culpas minimamente indispensáveis, como faz o cirurgião que só corta, ao operar, até onde é preciso, e no dá golpe mais fundo ou mais largo que o necessário.
Tome-se a corajosa resolução de unir os homens em vez de os dividir, de retirar do nosso vocabulário e das nossas conversas tudo quanto possa ferir e magoar o próximo, para que desça sobre a terra um pouco daquela paz e um tanto mais dessa alegria, que Deus prometeu aos homens de boa vontade.

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