Um pastor que dá a vida

 

A liturgia pascal tem o objectivo de celebrarmos a ressurreição de Jesus, mas também de a vivermos na nossa vida. É a ressurreição de Cristo a chave que interpreta o nosso agir e o nosso modo de viver. O livro dos Actos dos Apóstolos é disso uma prova: tudo o que muda a vida das pessoas por meio dos apóstolos, as conversões, os milagres, deve-se não ao mérito dos apóstolos nem às suas grandes capacidades, mas somente à fé em Jesus Ressuscitado. Fé em que acreditaram e passaram a testemunhar. O discurso de Pedro que escutámos hoje na primeira leitura acontece depois de um milagre feito por Jesus através deste Apóstolo. Pedro e João sobem ao templo para orar e vêem um coxo à entrada a pedir esmola. E Pedro diz-lhe: “Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto te dou: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda”. E o coxo ficou curado. A multidão fica perplexa, Pedro começa a anunciar Jesus, os sacerdotes do templo apanham Pedro e João e colocam-nos na prisão. Mais tarde são chamados à presença dos sumos-sacerdotes que lhes perguntam com que autoridade fazem milagres. E Pedro, como ouvimos na primeira leitura, cheio do Espírito Santo, falou-lhes de onde lhes vinha a autoridade e como tinha feito o milagre: de Jesus Nazareno, por eles crucificado, mas que Deus tinha ressuscitado. Ficaram admirados com a resposta, proibiram-nos de falar de Jesus mas eles disseram: “Julgai vós mesmos se é justo, diante de Deus, obedecer a vós primeiro do que a Deus. Quanto a nós, não podemos deixar de afirmar o que vimos e ouvimos”. Contextualizei a primeira leitura porque, como disse, o tempo pascal não é só celebrar a vitória de Jesus sobre morte. Terá de ser também a vitória da sua força em cada um de nós. Gostava só de sublinhar a frase principal deste capítulo 4 dos Actos dos Apóstolos que hoje ouvimos: É em nome de Jesus ressuscitado que aquele homem foi curado. Nós, cristãos, temos de ter a humildade suficiente para aceitar que o bem que fazemos não se deve só ao facto de sermos boas pessoas. Deveríamos acreditar e aceitar que Jesus ressuscitado age em nós e através de nós. Deveríamos acreditar e aceitar que Jesus é o grande protagonista do bem que fazemos e que quando não o fazemos, seja por timidez ou falta de tempo (a desculpa que mais usamos para que o bem não aconteça), é porque não temos o espírito de Cristo ressuscitado em nós. Deveríamos acreditar e aceitar que o Espírito Santo, que é a força de Cristo ressuscitado em nós, sopra onde quer e por isso sopra em nós, inspirando o nosso dizer e o nosso agir para o que cresce e não para o que destrói, para o bem e não para o mal, para a esperança e não para o desespero. Enquanto nos acharmos os protagonistas da história e das histórias Jesus ressuscitado ocupará sempre um lugar secundário na nossa vida. O gosto de sermos reconhecidos, o gosto de nós acharmos os maiores, o gosto de pensarmos que o pouco ou nada que fazemos de testemunho do bem já é muito, não deixa que Jesus seja o protagonista da nossa história. Mais Jesus e menos nós. Deveríamos inclusivamente na nossa oração a Deus, agradecer-lhe por termos feito o bem, agradecer-lhe por nos ter inspirado, agradecer-lhe termos ajudado a melhorar a vida de alguém que se cruzou na nossa vida. Mais Jesus e menos nós de tal modo que quanto antes pudéssemos dizer como São Paulo: já não sou que vivo, é Cristo que vive em mim. Na segunda leitura escutámos por duas vezes São João dizer-nos que somos filhos de Deus. Não por mérito nosso mas pela bondade de Deus. Somos filhos de Deus porque ele nos adoptou e porque o conhecemos. Conhecer, na Bíblia, não é um conhecimento teórico e abstracto, de catecismo ou doutrina, mas sim um conhecimento que é experiência de Deus, intimidade com Deus. O nosso cristianismo não depende do número de baptizados, mas sim do número dos que praticam o seu baptismo. O baptismo torna-nos filhos de Deus. Mas sabemos que, mesmo a partir da realidade humana e familiar, um filho tem direitos e tem deveres. Ser pai não é só reconhecer o filho, ser filho não é só ter o apelido do pai (ou da mãe). Somos filhos de Deus. E isso tem consequências na nossa vida. Falámos de algumas a propósito da primeira leitura, mas poderíamos todos aprofundar a nossa relação de filiação com Deus: que tempo dou a Deus, meu Pai? O que é que faço para agradar a Deus, meu Pai? Como é que o mundo poder ver em mim o rosto de Deus, meu Pai? Ser filho de Deus é sem dúvida a maior honra e o maior orgulho que o cristão pode ter. Mas cuidado, isso não faz de nós mais que os outros. Pelo contrário, exige de nós mais responsabilidade que aos outros. Ser filho de Deus não é um estatuto adquirido, mas sim um compromisso de glorificar a Deus com a minha vida. Finalmente, no Evangelho, escutámos uma passagem do capítulo 10 do Evangelho de São João e que dá nome a este domingo: do bom pastor. Jesus afirma-se como o bom pastor. A imagem poderia parecer-nos longínqua e já desajustada, mas não perde a força nem o sentido. Será talvez das mais usadas na Bíblia para falar da relação de Deus connosco. Talvez a mais humana para nos aproximar da dedicação, do interesse e do carinho que Deus tem por nós. Todos nós conhecemos quase de cor o salmo 23, que canta o profundo envolvimento de Deus, bom pastor, por cada um de nós: leva-me a descansar em verdes prados, conduz-me às águas refrescantes, reconforta a minha alma. E depois: ainda que tenha de andar por vales tenebrosos não terei medo porque sei que Deus, o bom pastor está comigo e com ele nada me faltará. Mas neste domingo do bom pastor o próprio Jesus assume o lugar de Deus: eu sou o bom pastor, destaca-se por três atitudes, fortes e pascais: defende, conhece e dá a vida pelas suas ovelhas. O bom pastor defende as ovelhas. Não as abandona, não se desinteressa, não foge quando vem o perigo. Ser pastor é quase como ser padre (não é por acaso que se associam os padres a pastores): é uma dedicação exclusiva e dedicada ao rebanho. Quando vemos reportagens sobre pastores vemos a sua dedicação pelo rebanho: quase não têm vida para si para poder dedicar-se totalmente a cuidar e defender o seu rebanho. Por ele madrugam e passam o dia no monte, por isso mantêm o rebanho junto para que nenhuma se perca ou corra perigo; por isso estão atentos para que nenhum mal lhes aconteça. Assim também Jesus, o nosso bom pastor, está totalmente dedicada a cada um de nós. Somos o seu rebanho, conduzidos por ele e protegidos por ele. O bom pastor conhece as suas ovelhas. Já disse há pouco o que significa na Bíblia o verbo conhecer. Nesta passagem do capítulo 10 do evangelho de São João conhecer significa também reconhecer: as ovelhas seguem o pastor porque reconhecem a sua voz. Quando vemos reportagens sobre pastores vemos como elas se levantam e aprontam quando o pastor chega ao curral, vemos com elas obedecem a um assobio ou a uma ordem, ou até como elas muitas vezes rodeiam o pastor. Porquê? Porque conhecem o pastor, porque confiam no pastor, porque há relação entre rebanho e pastor. Finalmente e mais importante: o bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas. Jesus di-lo por duas vezes. E aqui o que vemos nas reportagens tem um limite: o pastor arrisca por uma ovelha, tenta a todo o custo livrar uma ovelha… mas não dá a vida pelas ovelhas. Há um risco-limite que não ultrapassa. Por isso Jesus não diz que é como um pastor dedicado ou como um pastor empenhado com o seu rebanho. Com razão se intitula de Bom pastor. Bom de belo, como gostam de traduzir os biblistas, mas também bom de melhor. Jesus é o melhor pastor porque ama o seu rebanho ao ponto de dar a sua vida por cada uma delas e por todas elas. É isso que sentimos neste domingo de Páscoa: Cristo ressuscitado é o bom pastor, o belo pastor, o perfeito pastor, o melhor pastor porque deu a vida por ti, deu a vida por mim, deu a vida pelo seu rebanho, que é a Igreja. Jesus morreu para nos livrar da morte, Jesus morreu para nos dar a sua vida, Jesus morreu para que não nos perdêssemos nem nos dispersássemos. Neste domingo que é do bom pastor e também de oração pelas vocações, rezemos a Deus pelos pastores da Igreja: para que não sejam auto-referentes mas imitem aquele que é o único bom pastor, Jesus. Rezemos pelos que cuidam: os pais, os médicos e enfermeiros, os responsáveis de grupos, comunidades e movimentos, os voluntários para que sejam generosos, cuidadosos e dedicados na missão que exercem em favor do próximo. E rezemos pelos que se crêem filhos de Deus para que o sejam de nome e facto, fazendo sempre o bem, e que não atribuam as suas boas obras a si, mas Jesus Ressuscitado, origem de todo o bem que possamos fazer. Que assim seja.

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