Memórias de Feirão: O Domingo

Um pouco por todo o norte o domingo é o grande dia. Longe de ser o dia em que não se faz nada, acaba por ser o dia em que se pode fazer menos. É verdadeiramente o dia do descanso, que é merecido e deve ser santificado.
Lembro-me de, em pequeno, a minha mãe apontar para a lua explicar-me aquela mancha que aparecia algumas vezes, sobretudo quando estava cheia: foi uma senhora que, num domingo, se pôs a apanhar lenha. Apareceu-lhe Deus e perguntou-lhe o que estava a fazer. Ela respondeu que estava a apanhar lenha mas, que estava tão escondida que ninguém via. Então Deus disse-lhe: pois vou pôr-te num lugar onde todos te vejam. E lá está, para que as pessoas se lembrem que ao domingo não se trabalha.
A semana acabava no sábado à noite. Para não deixar trabalho para o domingo, o dia acabava mesmo tarde: muitas vezes, já nós em casa tínhamos jantado e ainda se ouviam carros de vacas a trazer lenha, feno, os molhos de centeio ou as batatas. E, se chegavam a essa hora, ainda tinham que descarregar. Daí que as Missas vespertinas nunca pegaram muito por estas terras. É mais por necessidade do padre que das pessoas. As pessoas gostam da Missa ao domingo de manhã. O sábado terminava com o banho; era como se fosse um ritual de despedida da semana: nós, os miúdos, e os outros miúdos daqui, que não trabalhavam tanto ou até tão tarde, no verão, tomávamos banho no rio. Passei lá esta tarde e não se compara em nada o que foi o rio Balsemão a passar no açude dos moinhos de Feirão… mas antigamente era assim, íamos ao rio tomar banho. Os homens e as mulheres (raparigas incluídas) tomavam banho em casa: aquecer água numa panela, temperá-la com água fria e tomar banho de caneco ou fervedor. Era assim há trinta anos (e hoje numa aldeia de Bragança, que deu na televisão).
Jantava-se e, algumas vezes havia baile ou íamos aos bailes das festas que aconteciam aqui perto: Cotelo, Dornas… também não havia muito mais por onde ir. Hoje há porque temos carros e o longe se faz perto. Eu já não me lembro de bailes semanais mas a minha mãe sim, que vinham uns tocadores e, mesmo cansados, havia forças para um pé de dança.
No domingo, a Missa era de manhã. O padre avisava a hora de uma semana para a outra e, povo avisado, o sacristão encarregava-se do resto. Manhã cedo ia-se por o gado numa lameira perto do povo. Não se ficava no monte na parte da manhã. Se a Missa fosse cedo, depois da Missa iam buscá-lo. Se fosse mais para o fim da manhã, iam buscar o gado antes de Missa.
A Missa tinha três toques de sino: o primeiro meia hora antes, o segundo quando se avistava o carro do padre e o terceiro, quando o padre subisse para o altar. No meu caso, como vivo em Feirão, o segundo toque dá-se quando chego à sacristia. O toque dos sinos ainda hoje me impressiona. Era ao segundo toque que as pessoas começavam a chegar. As da Barraca e da Padiola tinham que sair mais cedo porque viviam mais longe.
A Missa era o ponto alto do domingo: o coro cantava os versos que se aprendiam por aqui ou ali ou que o padre ensaiava, e a distribuição das pessoas, inalterável, quase de lugares marcados: homens à frente e no coro alto (onde a comunhão não chega) e, as mulheres, atrás dos homens. Nós, rapazes, eramos os mais sortudos: ou ficávamos com o pai no coro alto ou junto à mãe, lá por trás. No verão, a igreja tornava-se pequena e, os mais novos, ficavam na rua, ouviam a Missa pelos altifalantes.
No fim da Missa, três badaladas para a catequese. As catequistas, raparigas, davam catequese (doutrina) às crianças da catequese. Os homens iam para o café – o padre, se pudesse, juntava-se – e, as mulheres, preparar o almoço. Outro ponto alto do domingo: o almoço de domingo era, quase sempre, um assado.
Na parte da tarde ou se ia para o café ou se ia fazer algum trabalho leve para não pecar contra o domingo. Ir para o monte era considerado trabalho leve e regar também. As zeladoras do Apostolado da Oração faziam o peditório para o Sagrado Coração de Jesus. Normalmente, às oito da noite, havia o terço. O dia terminava como começava todos os dias, com o toque das Avé-Marias.
É justo lembrar aqui uma senhora muito piedosa, considerada por muitos como uma santa: a tia Maria Piedade. Piedosa, já disse, das que só falava com Deus ou de Deus. Solteira e sozinha no mundo, entregou a sua vida a Deus e à Igreja. Ela é que tinha sido a catequista de muita gente adulta (eu conheci-a já com muita idade). Sempre de terço na mão (debaixo do avental azul), ensinava as orações, como é que se devia benzer, como é que se punha o dedo na pia de água benta… Falava baixinho e, no fim de cada conversa ou frase, vinha sempre o “se Deus quiser”, que ainda hoje aqui se usa. Quando, nos finais dos anos oitenta se tiveram que dar os nomes às ruas, ela pediu que a dela fosse Rua de Santa Luzia. Assim se fez. A da nossa casa é das Flores, que não tem piada nenhuma, e muito menos flores. Mas, voltando à tia Maria Piedade, tinha ela debaixo da cama a mortalha preparada para o seu funeral: um vestido branco, que lhe vestiram numa manhã em que, depois de tocar as Trindades, ao juntarem-se na igreja para rezar, deram por falta dela. Tinha morrido durante a noite, na paz do Senhor. Deixou a casa dela para a igreja mas, a incúria fez com que a casa acabasse por cair e não ser nem da igreja nem de ninguém.
Como digo, ainda o hoje o domingo é dia de festa e de pouco trabalho. Muita coisa mudou, claro está, mas a beleza continua: o domingo é diferente e Deus queira que por muito tempo. Amanhã, às oito e meia, o sino tocará a primeira vez, e eu, qual prior de aldeia, celebrarei a Missa em Feirão e, às onze, onze anos depois, serei pregador da festa em Cotelo, em honra de Santa Bárbara e São Domingos.
(fotografia: o açude onde se tomava banho; in illo tempore nem as pedras do açude se viam...)

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