Democracia à moda antiga

Aristóteles, na sua Ética a Nicómaco (livro 8), ao falar da amizade, fala também das formas de governo de das suas degenerações. Que a monarquia degenera em tirania, a aristocracia em oligarquia e a timocracia (governo da maioria) degenera em democracia. E, remata dizendo que a democracia acaba por ser a perversão menos má das formas de governo (Aristóteles vai desenvolver esta ideia na sua Política mas não deixa de surpreender que apareça no livro da amizade).
Vários foram repetindo esta ideia, quando diziam que todas as formas de governo são más mas a democracia acaba por ser a menos má. Churchill é um deles é Saramago também o dizia.
A Ordem dominicana a que pertenço é, por inspiração, natureza e tradição, verdadeiramente democrática. Diz-se que no século XIII, houve três frades dominicanos que determinaram a sua força e continuidade: São Domingos deu-lhe o carisma, São Tomás deu-lhe a teologia e Humberto de Romans organizou-a. Por um lado está correcto, e já volto a Humberto de Romans, mas a verdade é que São Domingos, quando fundou a Ordem deixou-a de tal modo bem organizada e fundada que não tardou em pedir, num capítulo Geral, que aceitassem a sua demissão por ser indigno do cargo. Não era retórica, mas sim libertar-se do governo para ir pregar, salvar almas e até morrer nas mãos dos cumanos (para isso deixou crescer a barba!).
A democracia está, então, nas bases da fundação da Ordem. Não quero ser exaustivo com esta parte mas, só para termos uma ideia, diz-se que São Domingos submetia-se às decisões do Capítulo Geral e obrigava também os irmãos a obedecer às leis aprovadas.
Mas foi, sem dúvida, Humberto de Romans quem, ao explicar tudo o que diz respeito à vida dominicana, mais contribuiu para que a democracia fosse uma das nossas características.
Talvez o princípio mais forte que Humberto de Romans estabeleceu é este: o que diz respeito a todos deve ser decidido por todos. E este princípio tem vários níveis: o “todos” significa, na base, todos os irmãos que vivem no convento e que tenham feito a sua profissão solene. São esses irmãos que elegem o prior, que dão consentimento para alguns cargos e, inclusivamente, podem decidir sobre a estrutura da vida comunitária. A Ordem tem uma estrutura própria que chamamos de Capítulo, que é o lugar de reunião destes irmãos. O mesmo Humberto de Romans acrescenta depois que o prior não deve molestar os irmãos por qualquer motivo e, por isso, cria-se uma estrutura, igualmente democrática, chamada conselho, do qual fazem parte os irmãos por razão de ofício mas também uma maioria de irmãos eleitos pelo Capítulo. Estes irmãos decidem coisas mais de ofendem prática, dispensando todos os irmãos de estarem envolvidos em todas as questões que acontecem na vida de uma comunidade. É o Conselho que tem um segundo voto depois do Capítulo, quem pode autorizar uma despesa maior na aquisição de equipamentos ou obras, quem aprova as contas mensais... todos têm mandatos, de acordo com os seus cargos, normalmente por três anos, e os mandatos nos cargos têm um limite de dois, ou três por excepção.
Subindo a estrutura para um nível médio temos o governo provincial. Funciona da mesma maneira que a inferior mas com as seguintes alterações: os membros do Capítulo Provincial são, por ofício, os priores dos conventos e, por eleição, os delegados das comunidades, de forma proporcional ao número de frades numa comunidade. Este ratio dá equilíbrio e proporção de acordo com a realidade. É este Capítulo que elege o provincial, elege os que com ele vão formar o Conselho da Província que, regularmente se reúnem para ir gerindo a província e elegem ainda os que irão representar a província no Capítulo Geral. Todos estes membros têm mandatos de quatro anos, podendo ser renovados.
Subindo mais um degrau na estrutura chegamos à mais alta que é a do Capítulo Geral. O Capítulo Geral é a reunião de irmãos que, por razão de ofício ou por eleição, nela participam. Temos três espécies de Capítulo, que se reúnem em cada três anos, sendo que o electivo é o primeiro da série, acontecendo cada nove anos. Neste capítulo geral estão os que por direito podem participar (provinciais) e os eleitos pelo Capítulo provincial. Em todos os capítulos gerais se define (decisões sobre o futuro da Ordem) e, no electivo, elegem o Mestre da Ordem.
Em todas estas estruturas é mais importante o conjunto que a pessoa, ou seja o Capítulo Geral é mais importante que o Mestre da Ordem, o Capítulo provincial que o Provincial e o Capítulo conventual que o prior. As pessoas governam depois de terminarem os capítulos, pondo em prática o que o Capítulo lhes incumbir.
Na Ordem dominicana não houve, até há pouco tempo, conselho Geral, ou seja, o Mestre da Ordem governava sozinho toda a Ordem. Mas nos últimos tempos há um conselho que ajuda o Mestre a governar a Ordem. Em alguns casos tem que pedir consentimento ao Conselho mas não está obrigado a convocá-lo periodicamente. Por isso não é elegido no Capítulo Geral mas, normalmente o Mestre da Ordem pede conselho aos provinciais para a nomeação destes sócios, distribuindo geograficamente a ordem por cada um deles.
Para finalizar, um terceiro princípio democrático de Humberto de Romans: mais importante que conseguir uma maioria é tentar chegar a uma unanimidade. E creio que esta é a sabedoria da democracia dominicana. Ninguém deve ficar contente por ter ganhado uma causa por mais um voto mas todos devemos ficar contentes por ter chegado à unanimidade. Ganhar por mais um ou dois votos significa que há uma “oposição” igualmente forte, que poderia criar tensões na comunidade. Por isso Humberto de Romans aconselha por um lado que haja diálogo aberto sobre os temas mais delicados de forma a formar uma consciência mais comum e depois tentar chegar à unanimidade.
Há um quarto ponto que não é de Humberto mas que vem à origem do próprio São Domingos porque o viveu e o fez viver: o que for aceite pela maioria (de preferência unanimemente) deve ser assumido por todos.

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