A tia Clarinda e a minha mãe que também é Clarinda

Hoje foi um dia de rara beleza. Para começar, esteve mais fresco, o que torna os dias mais leves. Depois pelo que estava combinado já ontem, em Cotelo: visitar a única tecedeira que ainda lá tece. Tem 82 anos, chama-se Clarinda (a minha mãe chama-se assim por causa dela), e tece num tear de 1837, tem lá a data registada; contas fáceis de fazer: o tear tem 175 anos!
Não consigo descrever os diálogos nem explicar os nomes das peças porque foram entrelaçados com outras conversas e os nomes são assim porque sim. Uns sabia, outros não e outros cheguei lá por dedução: por exemplo, o lugar onde se senta a tecedeira (na fotografia é o pau que está mais à direita) chama-se sedeira, de Sé, assento.
Combinei às 10 horas na capela. Ela lá estava a acabar de rezar o terço. Lá me levou à sua casa, humilde, como quase todas, e é orgulho: humilde mas asseada.
Enquanto subíamos as escadas lá me explicou que tinha tecido muito para a minha avó materna, sobretudo mantas e passadeiras. E que um irmão da minha avó, que era para ser marido de uma irmã dela e padrinho da minha mãe, era muito amigo da casa, e que disse que se fosse padrinho da minha mãe lhe punha o nome de Clarinda. Padrinho não chegou a ser mas o nome sim, ficou.
Abriu o cancelo e entrámos na casa do tear: apenas uma divisão que é sala de jantar e sala de trabalho: a um canto, agarrado à parede está o tear, armado, e com uma manta meia feita. No outro lado a mesa de jantar para os dias de festa, as arcas, as fotografias da família e quadros dos santos. O tear foi o pai que o comprou. Como o tear é pequeno, para trabalhos grandes tem que se fazer sempre em duas partes ou mais. A Tia Clarinda agora só tece para a família, com pena que ninguém tenha querido aprender a arte, talvez culpa das máquinas, “que agora fazem tudo, mas não é à mão”.
Para ir trabalhar tem que entrar no tear por baixo, quase rente ao cão. Depois, senta-se na sedeira e, com os pés nos pedais, para ir alternando a teia, lá vai passando a lançadeira ou acrescentando linhas para os motivos do trabalho que estiver a fazer, se for caso disso.
O que lhe custa mais, e tem que pedir ajuda a uma sobrinha que também anda mal das costas, é fazer a urdidura. Os fios têm que ser escorridos e traçados numa técnica que já não consigo reproduzir.
As canelas da lançadeira são enchidas na caneleira. Um instrumento manual, antigo, que, de forma rápida, enche a canela para colocar na lançadeira.
Depois da demonstração disse-me que também fazia meia. Meias de cinco agulhas. A lã não era das ovelhas de Cotelo mas das da Madeira. Uma sobrinha que lha mandou e ela aproveitou para fazer meias. Vai dá-las aos pobres, que andam a fazer uma campanha de recolha de roupa para os pobres, mas tive também direito ao meu par: um grande que o senhor padre tem os pés grandes.
A parte da tarde não foi menos interessante. Pelo menos emocionalmente. Fui com a minha mãe fazer uma caminhada até ao monte de São Cristóvão. É das coisas mais bonitas percorrer estes montes com as pessoas que lá viveram: vêm as histórias do antigamente e as de hoje; preocupações, desabafos... É como eu: a serra liberta os pensamentos e as palavras.
Entretanto amanhã começa a novena da Senhora do Fojo. Espero lá ir, como ouvinte, já que vou passar o dia por aqueles lados.
 
 

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