As segadas e as malhas

Vi, ontem, em Cotelo, uma malha. Não se confunda o sentido original do verbo malhar, que significa debulhar com um malho (ou mangual, como se diz por aqui) os cereais. Daqui derivou um outro sentido, metafórico, que é dar pancada a alguém (levas uma malha, dou-te uma malha).
É do primeiro sentido que falo e, ao ver a malha numa propriedade veio-me à memória da minha não tão curta idade, que já conheci três modos de malhar.
O primeiro, que só recordo mesmo na memória de infância e só vi uma vez, é o mais tradicional: fazia-se a segada (corte das espigas nos campos) e faziam-se molhos. Depois, com esses molhos fazia-se uma meda com as espigas para dentro para que os pássaros não as viessem comer ou a possível chuva estragar. Estando a segada feita um carro de vacas trazia os molhos. Desfazia-se a meda e voltava-se a fazê-la já na aldeia, nas eiras, que as mulheres iam preparando para a malha. A preparação da eira não era do modo mais higiénico, hoje a ASAE suspendia qualquer tentativa mas o que é certo é que os grãos não se podiam perder nos buracos das eiras e, por isso, era preciso barrá-las com betume natural, que o leitor me vai dispensar explicar em pormenor.
Estando a eira seca podia-se então malhar o centeio. Um homem, do cimo da meda atirava os molhos para baixo. Duas mulheres, frente a frente, abriam os molhos e espalhavam de modo a que as espigas ficassem no centro. Atravessados a elas estavam dois homens que, com o mangual, batiam alternadamente nas espigas para soltar o grão. As mulheres iam virando as espigas até ficarem sem grão. A palha, aqui chama-se colmo, porque não era atingida com o mangual, ficava direitinha e servia para colmar as casas (até há pouco, nas aldeias, não havia telhas para as casas, usava-se o colmo). Este processo, de malhar, que implicava força de braços, poderia demorar um ou mais dias, conforme o que se tivesse recolhido. Depois o grão era joeirado pelas mulheres, que se colocavam do lado do vento. Levantavam um recipiente com o grão, deixavam-no lentamente e o vento fazia a separação de qualquer resíduo das espigas (aqui chama-se pragana) que saísse e ficasse só o grão. O grão, finalmente, era colocado em sacas de pano e levado para os celeiros.
Como digo, era muito pequeno quando assisti a este tipo de malhas, em que umas tias-avós faziam uma parte do trabalho, e o meu pai com um tio, malhavam o grão.
Daqui se evoluiu muito com os motores e tractores. Em tudo igual ao primeiro modo, o segundo só variava mesmo já na eira. Juntavam-se as medas nas eiras e vinha a última invenção do homem, a malhadeira, que dispensou o trabalho manual dos homens. Os manguais ficaram votados ao esquecimento e hoje são vendidos para museus. Eu fiquei ainda com os dois que se usaram na última ceifa, e que hoje servem de decoração cá na casa, Mas voltando à malha, um homem, do cimo da meda mandava os molhos a um outro, que os abria e entregava ao malhador, que os fazia entrar na máquina e que separava o grão da palha. Uma mulher, na outra parte da malhadeira, recebia a palha que a mandava para um monte e, outras mulheres, de lenço na cabeça e na boca, por causa do pó e das praganas, escolhiam o colmo da palha partida. Graças a Deus que as telhas vieram e já não era preciso aproveitar a palha. Homens, com lençóis grandes, faziam trouxas de palha e levavam para o palheiro.
O terceiro modo, que foi o que ontem vi, simplificou muito mais. A falta de mão-de-obra, humana e animal, fez com que já quase não se dê conta. Agora, as malhadeiras vão às leiras e lá fazem a malha. Um tractor traz a palha e outro as sacas do centeio. O que se ganhou? Ganhou-se tempo e esforço. O que se perdeu? O convívio, a alegria, os namoros que se arranjavam entre as que escolhiam a palha e os que a levavam ao palheiro… Mudam-se os tempos mudam-se as vontades, dizia o nosso Camões. A memória vai registando e, de vez em quando, provocada pelo que se fala ou vê, traz ao presente o que se viveu.
(fotografias: malha em Cotelo e manguais)

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